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09/08/2006

Dias de revolta

Ana Palma


Na quinta-feira, 10 de novembro de 1904, a cidade do Rio de Janeiro amanheceu em pé de guerra. O motivo para tamanha irritação era a publicação, por A Notícia, do draconiano projeto de regulamentação da Lei de Vacinação Obrigatória, aprovada em 31 de outubro daquele mesmo ano, após calorosa polêmica.

Arquivo/Fiocruz
 

Na legenda à esquerda se lê: "aspecto da Praça
da República no dia 14 de novembro de 1904

Para uma medida que despertava tanta oposição - pelo menos 15 mil pessoas assinaram listas contra a obrigatoriedade encaminhadas ao Congresso -, sua regulamentação incendiava ainda mais os ânimos, já que não deixava qualquer saída.

O atestado de vacina era exigido para tudo: matrícula em escolas, emprego público, doméstico ou nas fábricas, viagem, casamento, voto, hospedagem em hotéis e casa de cômodos etc.

A reação foi violenta. Do dia 10 ao 12, acidade era sacudida por choques entre a polícia e a população, passeata e comícios. No dia 13, estourava realmente a rebelião, com o povo ocupando os pontos centrais da cidade, construindo trincheiras e enfrentando a polícia a tiros. No dia seguinte, os combates iniciaram-se cedo e espalharam-se por outros bairros. Por toda parte, viam-se incêndios, saques e depredações. A Escola Militar da Praia Vermelha aderia à revolta, rendendo-se apenas na madrugada do dia 15, ante a ameaça de bombardeio pelas forças navais.

Com a derrota dos cadetes, o movimento assume um caráter mais popular. Operários faziam barricadas e atacavam fábricas e uma delegacia. E no bairro da Saúde, segmentos marginalizados da população resistiram até a invasão das forças militares. Houve incidentes isolados até o dia 19. A revolta tinha sido debelada. Seu saldo: 945 prisões, 461 deportados, 110 feridos e 30 mortos.

Muito mais que apenas medo de injeção

Um acontecimento de tamanhas proporções não foi, sem dúvida, motivado apenas pelo medo de injeção. Revisitá-lo significa delinear o contexto em que se deu a Revolta. É buscar na compreensão do longo processo de expropriação a que foi submetida a população carioca de baixa renda com o bota-abaixo da Reforma Pereira Passos e nas manipulações políticas das elites nacionais (positivistas, republicanos radicais, descontes com os rumos adotados pelo novo regime, velhos monarquistas instaurados na restauração, jovens militares), os prováveis estopins de uma sublevação que deixou nos rostos e na cidade marcas mais profundas que as da varíola.

Arquivo/Fiocruz
 

Cartuns publicados na época retratam o clima de guerra na época

Oswaldo Cruz, que assumira em 1903 a Diretoria Geral de Saúde Pública, iniciava suas campanhas com mão de ferro. Brigadas sanitárias, acompanhadas por policiais, percorriam a cidade, invadindo casas, interditando prédios, removendo doentes à força. Somente no primeiro semestre de 1904, foram feitas 110.224 visitas domiciliares, com 12.971 intimações e 62 interditos. O regulamento sanitário de Cruz - logo apelidado de Código de Torturas - interferia diretamente na vida da população que, já tão massacrada pelo custo de vida e sem moradia pela reforma urbana, via-se agora tolhida no exercício de seus subempregos.

"Esse instrumento (a lei de março de 1904) lhe permite invadir, vistoriar, fiscalizar e demolir casas e construções. Estabelece, ainda, um foro próprio, dotado de um juiz especialmente nomeado para dirimir as questões e dobrar as resistências. Ficam vedados os recursos à justiça comum. A lei de regulamentação da vacina obrigatória, em novembro desse ano, viria a ampliar e fortalecer essas prerrogativas, colocando toda a cidade à mercê dos funcionários e policiais a serviço da Saúde Pública. Se alguém escapara dos furores demolitórios de Lauro Muller e do prefeito Pereira Passos, não teria mais como escapulir aos poderes inquisitoriais de Oswaldo Cruz", assinala o historiador Nicolau Sevcenko.

Virtude feminina, inviolabilidade do lar e honra do chefe do família eram ameaças ao povo

Contudo, aspectos econômicos não explicam na totalidade o movimento. Não se pode descartar as razões ideológicas e morais. Conviviam dois conjuntos de valores. Se, por um lado, a elite protestava contra o intervencionismo do Governo e o ataque à liberdade individual, por outro, o povo se sentia ameaçado pelos desrespeitos à virtude feminina, a honra do chefe de família e a inviolabilidade do lar.

Arquivo/Fiocruz
 

"A Revolta da Vacina permanece como exemplo quase único na história do país de movimento popular de êxito baseado na defesa dos direitos dos cidadãos de não serem arbitrariamente tratados pelo governo. Mesmo que a vitória não tenha sido traduzida em mudanças políticas imediatas além da interrupção da vacinação, ela certamente deixou entre os que dela participaram um sentimento profundo de orgulho e auto-estímulo, passo importante na formação da cidadania. O repórter do jornal A Tribuna (...) ouviu de um preto acapoeirado: (...) O mais importante era mostrar ao governo que ele não põe o pé no pescoço do povo", relata o historiador José Murilo de Carvalho.

Agosto/2003

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