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04/10/2013

Doença rural negligenciada afeta 30 mil brasileiros

Danielle Monteiro


O comerciante Onofre Gama, morador de Três Rios (RJ), percebeu que estava com o rosto muito inchado e foi procurar ajuda médica em um hospital de Petrópolis, onde foi equivocadamente diagnosticado com hanseníase. “Fiquei seis meses me tratando, até que a médica descobriu que não era nada disso”, relata. Ainda sem um diagnóstico definido, Onofre foi encaminhado a um hospital no Rio de Janeiro. Lá, após feita a biópsia, finalmente descobriram seu problema: ele sofria de paracoccidioidomicose, uma doença que atinge cerca de 30 mil brasileiros. A trajetória do comerciante, que atualmente está sendo tratado no Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (Ipec/Ficoruz) – referência para o tratamento de paracoco no estado  é semelhante à de muitos trabalhadores rurais brasileiros que sofrem da enfermidade. “Muitos demoram para obter um diagnóstico e começar a ser tratado, pois rodam vários serviços de saúde antes de finalmente chegar àquele que disponibiliza o tratamento”, conta o dermatologista e sanitarista do Ipec/Fiocruz, Ziadir Coutinho. Segundo ele, 60% dos acometidos por paracoco são trabalhadores rurais ou profissionais que já trabalharam no campo. A doença é contraída pela inalação do fungo Paracoccidioides brasiliensis, durante a cavação do solo.

À medida que o homem vai desbravando novas fronteiras, desflorestando e adentrando novos territórios para o aproveitamento agropecuário, a paracoco vai aparecendo em outras regiões
 

Descrita pela primeira vez em 1908 pelo médico e sanitarista brasileiro Adolfo Lutz, a paracoccidioidomicose é endêmica no continente latino americano. O Brasil concentra 80% dos casos, devido às condições climáticas e de solo apropriadas para a existência do fungo. Mas a alta incidência da doença no país tem um motivo especial: “À medida que o homem vai desbravando novas fronteiras, desflorestando e adentrando novos territórios para o aproveitamento agropecuário, a paracoco vai aparecendo em outras regiões”, explica o infectologista da Fiocruz Bodo Wanke. Não é à toa que a distribuição da enfermidade em solo nacional muda de acordo com as décadas. As regiões atualmente mais afetadas são Rondônia, Mato Grosso e a barra sul da Amazônia. A explicação para a presença de seu agente causador na terra é um tanto curiosa: “Até onde se conhece, a existência do fungo, que pode ficar inativo no organismo humano de 30 a 40 anos, está associada a habitats de tatus. Até 70% desses animais, quando são capturados, estão infectados”, conta Wanke.

A paracoco é predominante em indivíduos adultos (95%) do sexo masculino, entre 30 e 50 anos de idade. A incidência da doença está associada a um hábito ainda comum entre os brasileiros: o grupo de fumantes é o mais atingido, apresentando 14 vezes mais chances de contraí-la. “Quase 100% dos meus pacientes fumam. Não se sabe o porquê, mas há uma forte associação com a enfermidade”, revela o dermatologista da Fiocruz Antonio Carlos Francesconi. “E as poucas mulheres que adquirem a doença também são fumantes”, observa Wanke.

Os principais desafios

Por ser negligenciada, a paracoccidioidomicose impõe uma série de desafios para o sistema nacional de saúde. O diagnóstico é simples e a doença tem cura, mas a mortalidade ainda é elevada, por falta de conhecimento e divulgação da doença. A ausência de estrutura para atendimento dos casos, bem como de profissionais e de testes diagnósticos nos serviços de saúde, são alguns dos principais entraves para o combate à paracoco. “É preciso disponibilizar os exames sorológico e micológico nas regiões endêmicas, assim como treinar profissionais para o diagnóstico e levar a esses locais equipes de especialistas como neurologistas, endocrinologistas e dermatologistas. Estima-se que 5% dos pacientes adquirem problemas neurológicos e quase 40% têm comprometimento adrenal”, propõe Coutinho. No Rio de Janeiro, somente a Fiocruz dispõe do exame sorológico que detecta o Paracoccidioides brasiliensis. Se não for tratada, a enfermidade, que pode afetar qualquer órgão do corpo humano, pode deixar sequelas irreversíveis como rouquidão, epilepsia e insuficiências pulmonar e renal.

Outro problema, segundo Coutinho, é que a paracoco é comumente confundida com outras enfermidades como câncer e tuberculose, podendo, inclusive, ocorrer concomitantemente a elas. Até 14% dos casos pode ter associação tuberculose – paracoco, o que dificulta o tratamento de ambas as doenças. Segundo o especialista, apenas 25% dos portadores de tuberculose são tratados sem exame micológico que confirme a paracoco. Para Coutinho, as autoridades deveriam ainda dar mais atenção ao próprio conceito da doença, ainda conhecida pela comunidade acadêmica como blastomicose sul-americana, nomenclatura abolida já na década de 70. “A blastomicose é causada por outro fungo, que só existe nos EUA, Canadá e México. No Brasil, 70% dos casos de paracoco estão registrados como blastomicose”, adverte.

A dificuldade de acesso ao tratamento, disponível somente em algumas regiões, bem como sua longa duração – o paciente leva, no mínimo, um ano para ser tratado – também encabeçm a lista de entraves na luta contra a paracoco. O índice de abandono é de cerca de 30% ou mais no país. “O tratamento mais disponível, que é feito com sulfa, dura dois anos. Esse abandono é comum em outras doenças como tuberculose, mas, nesse caso, existem equipes que vão resgatar esses pacientes, o que não ocorre com a paracoco”, relata Francesconi. Para avançar na luta contra a enfermidade, é preciso ainda dar continuidade aos programas voltados ao seu combate, segundo os especialistas.  “A gestão muda e os profissionais que tratam da doença são deslocados para outros campos de atuação e regiões. A paracoco é brasileira e nós que temos que enfrentá-la, pois ela acomete as pessoas que produzem nossos alimentos e que precisam ser valorizadas”, conclui Coutinho.

*colaborou: Priscila Sarmento

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