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29/08/2023

Especial COC/Fiocruz - O Ministério da Saúde e o PNI: O PNI em áreas indígenas - percursos e desafios

Carolina Arouca G. de Brito​​ (COC/Fiocruz)​*


A fotografia do médico Erik J. Simões que circulou o mundo em 2022 conta a história de um filho, Tawy Zo’é, carregando o seu pai, Wahu Zo’é, até o posto de saúde mais próximo de sua aldeia para receber a primeira dose da vacina contra a Covid-19. O povo indígena Zo’é, localizado em uma área de mata densa entre os rios Cuminapanema e Erepecuru, na região norte do Pará, está entre os considerados povos de recente contato e que preservam sua organização social e modos de vida na mata. O percurso da aldeia até o posto de saúde/vacinação mais próximo daquele território teria durado cerca de seis horas para ir e mais seis horas para voltar. 

Mas o que esta imagem pode nos dizer sobre a vacinação em áreas indígenas? Talvez o primeiro impacto que a imagem nos cause seja a dificuldade que pai e filho enfrentaram para chegar até um posto de vacinação. As longas distâncias que separam inúmeras terras indígenas dos grandes centros têm sido apontadas historicamente como uma das maiores dificuldades na prestação de assistência sanitária pelo Estado às populações indígenas (Brito e Lima, 2013).

As distâncias e as dificuldades de acesso comprometeriam também a permanência ou a regularidade do atendimento médico-sanitário das equipes de saúde, o que poderia explicar em parte o fato da longa caminhada de Tawy Zo’é. Em relação à vacinação, especificamente, a logística para o armazenamento e para a aplicação das doses em áreas indígenas é central centrais e demanda planejamento e agilidade das equipes. Garnelo (2011), a partir de observações acerca de aspectos socioculturais das atividades de vacinação ocorridas em áreas indígenas do Alto Rio Negro (AM), sobretudo, entre os Baniwa, apontou aspectos centrais para o processo de vacinação.

Diante das longas distâncias entre as aldeias e a sede municipal, onde estão localizados os insumos sanitários, a autora destacou que a vacinação naquela região requer planejamento e é desenvolvida em regime de campanhas. O acondicionamento das vacinas é feito em isopores com gelo e a viagem deve ser feita com rapidez a fim de que se assegure a conservação dos insumos (Garnelo, 2011). No entanto, não há garantias de que todas as doses serão aplicadas, por razões de logística e por razões socioculturais, que vão desde um descompasso entre as rotinas diárias de subsistência (plantio e colheita, por exemplo), que impossibilitam a presença de grupos indígenas na hora e local em que as equipes chegam as aldeias, até as de ordem simbólica e cultural, sobretudo pela divergência entre o entendimento Baniwa e os conceitos da biomedicina acerca das concepções de saúde (Garnelo, 2011). Divergências essas que não impossibilitam a adesão do povo Baniwa aos procedimentos biomédicos, como deixa claro a autora: “ocorre apenas que o fazem segundo a lógica própria de seu pensamento mítico, que opera como base de ancoragem para as informações oriundas do mundo não indígena que adentram seu meio social” (Garnelo, 2011, p. 182).

Neste ponto, podemos ancorar mais uma impressão acerca da imagem que abre este texto. Certos de que as observações trazidas por Garnelo (2011), acerca dos Baniwa não estão distantes da realidade de diversas outras etnias, sobretudo em relação às diferentes concepções em torno do conceito de saúde e doença, a imagem reflete a articulação possível entre os pensamentos indígenas e não indígenas sobre a centralidade da vacinação. Articulação possível por meio da informação e de estratégias de comunicação em saúde voltadas para as populações indígenas. É claro que se trata de uma hipótese, afinal, não teríamos meios para atestar que foi devido a um esforço de comunicação e/ou de tradução, não apenas linguística, mas sociocultural, sobre a importância da vacinação no combate à Covid-19, que Tawy Zo’é foi estimulado a conduzir seu pai por longas horas até o posto de vacinação mais próximo.

As distâncias e os possíveis diálogos entre a biomedicina e a cosmovisão indígena sobre saúde têm sido objeto de estudos (Langdon, 1988, 1994, 2005; Herrera, 1991; Buchillet, 1995; Garnelo e Buchillet, 2006) e permanecem como eixos centrais para as reflexões acerca da saúde das populações indígenas do país.

Como sabemos, as atividades e/ou campanhas de vacinação entre os povos indígenas no país precedem, e muito, a vacinação contra a Covid-19 e mesmo a estruturação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), em 1973, que figurou, no âmbito de um conjunto de ações em saúde pública, uma importante iniciativa “voltada para o controle de doenças evitáveis por imunização no Brasil” (Temporão, 2003, p. 606), e que este ano completa 50 anos de atividades ininterruptas.

Na documentação oficial do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), é possível recuperar atividades de vacinação em terras indígenas ainda nas décadas de 1940 e 1950, pelo menos. Tais atividades de vacinação eram implementadas por meio de múltiplos convênios estabelecidos entre o SPI e outros órgãos vinculados ao Governo Federal, como com o Departamento Nacional de Endemias Rurais (Deneru), vinculado ao Ministério da Saúde (MS), a Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA), o Serviço especial de Saúde Pública (Sesp), entre outros. Ainda na década de 1950, destacam-se as atividades desempenhadas pelo Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (Susa), vinculado ao Serviço Nacional de Tuberculose do Ministério da Saúde e coordenado pelo médico sanitarista Noel Nutels. Nas década de 1960 e 1970, destacam-se as ações sanitárias e as campanhas de vacinação realizadas na região do recém-criado Parque Indígena do Xingú, sobretudo, a partir do Projeto Xingú, coordenado pelo médico Roberto Baruzzi, vinculado à Universidade Paulista de Medicina, hoje Unifesp.

 

Como mencionado anteriormente, em 1973, o Ministério da Saúde, a partir da Portaria no 311, de 9 de novembro, instituiu o Programa Nacional de Imunizações, inaugurando uma nova fase para o campo da prevenção por meio da vacinação, no âmbito da política de saúde pública do país. Porém, mesmo após a criação do PNI, a vacinação em terras indígenas seguiu sob a coordenação do órgão federal responsável pela questão indígena nacional, naquele período a Fundação Nacional do Índio, hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). As equipes volantes de Saúde (EVS) da Funai assumiram o papel de organizar a vacinação, além de prestar assistência sanitária em áreas indígenas. Sob modelo semelhante ao desenvolvido na década de 1950 pelo Susa, as EVS prestavam atendimento pontual e descontinuado às comunidades indígenas do país. Durante grande parte das décadas de 1980 e 1990, a Funai atravessou períodos de instabilidade política e estrutural e o “atendimento à saúde nas áreas indígenas tornou-se ainda mais desorganizado e esporádico” (Cardoso et al., 2012, p. 920).

As lutas pela Constituinte (1988) e os debates sobre a saúde indígena que ocorreram entre as décadas de 1970 e 1980, ganharam força na 1ª Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio, no bojo da 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS). E a 2ª Conferência Nacional de Saúde Indígena (1993) teve como tema central a definição das diretrizes da Política Nacional de Saúde para os Povos Indígenas. Esses debates estabeleceram as bases para a criação de um subsistema de saúde indígena, vinculado ao SUS, e que coordenaria integralmente a assistência às populações indígenas do país, incluindo, é claro, a vacinação. Em 1999, com a promulgação da Lei Arouca, foi criado o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, que pautou a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, em 2002.

Antes, porém, da implementação da Lei Arouca, a saúde indígena passou por inúmeras instâncias de coordenação. A partir do Decreto nº 23/1991 a saúde indígena deixou de ser responsabilidade da Funai e passou a ser regulada pelo Ministério da Saúde. Em 1994, com a criação da Comissão Intersetorial (CIS), a coordenação da saúde indígena volta, em parte, para a Funai, o Decreto nº 23/1991 é revogado e o Ministério da Saúde segue como órgão encarregado das ações de prevenção para a população indígena.

A partir da instituição do subsistema e da criação dos Distritos Sanitários Especiais (DSEI), o Ministério da Saúde, no âmbito a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), em conjunto com a Secretaria de Assistência à Saúde (SAS), inicia uma parceria efetiva com o PNI, para a estruturação de rotinas de vacinação em áreas indígenas no país (Brasil, 2013). Anos mais tarde, em 2010, foi instituída a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ligada diretamente ao MS e que até hoje responde pela efetivação da política de assistência médico-sanitária indígena no país.

Foi também em 2010 que a Portaria nº 1.946, de 19 de julho, estabeleceu, para todo o território nacional, o calendário de vacinação para os povos indígenas, pela primeira vez sistematizado no âmbito do PNI (Brasil, 19 jul. 2010). Essa portaria fui substituída por outra, de nº 1.498, de 19 de julho de 2013, e novamente pela Portaria nº 1.533, de 18 de agosto de 2016, em vigor ainda hoje, que redefiniu o calendário nacional de vacinação para todo o território nacional, para a população indígena e não indígena. Nesse novo regulamento, as ações de vacinação em áreas indígenas passaram a ser geridas pela Sesai/MS.

Durante grande parte do século 20, sobretudo no âmbito do SPI (1910-1967), a assistência sanitária às populações indígenas brasileiras foi apresentada, tanto em textos de época quanto em pesquisas contemporâneas, como inoperante, ineficiente e irregular (Brito e Lima, 2013). Sobre o tema da saúde indígena de forma geral há hoje uma vasta literatura. Trabalhos de pesquisa desenvolvidos nas últimas duas décadas mapearam o campo a partir de interfaces disciplinares, especialmente a partir de diálogos entre a antropologia, a medicina e a saúde coletiva (Pontes et al., 2019; Cardoso et al., 2012; Coimbra et al, 2013; Costa, 1987; Garnelo et al., 2003; Garnelo ; Pontes, 2012; Garnelo, 2014; Verani, 1999; Baruzzi, 2005; Kabad, 2020, entre outros). Esse mapeamento ocorreu também no campo da história da saúde, a partir de trabalhos que buscam analisar a assistência sanitária aos grupos indígenas e a construção de políticas públicas de saúde voltadas para as populações indígenas (Pontes et al., 2019; Brito, 2011; 2017; 2019; 2020; 2021; Brito e Lima, 2013).

Nesse cenário bibliográfico figuram reflexões, ainda que secundárias, sobre as atividades, campanhas e/ou os processos de vacinação voltados para populações indígenas. Desde a primeira metade do século 20, a vacinação tornou-se uma importante ferramenta sanitária para a manutenção da vida da população indígena brasileira (Baruzzi, 2005, p. 99). O PNI, especialmente a partir das normativas de 1999, 2010 e 2013, em diálogo com a construção da Política Nacional de Saúde Indígena (2002), representa um inegável avanço na prevenção de doenças curáveis por meio da vacinação. Porém, há ainda demandas logísticas e socioculturais que merecem a atenção do Sistema Único de Saúde no âmbito da vacinação em áreas indígenas.

A luta coordenada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em 2020, pela inserção da população indígena como grupo prioritário para a vacinação de Covid-19 e em seguida pela ampliação desse serviço aos indígenas não aldeados, demonstra o quanto ainda precisamos avançar no debate em torno da integralidade e legitimidade das especificidades da saúde das populações indígenas no país. Especificidades e/ou diferenças legítimas e que “fazem parte um sistema cultural de saúde, não de superstições ou fragmentos de um pensamento menos evoluído” (Langdon, 2001, p. 160). Compreender essas demandas, observadas no tempo e no espaço, e em diálogo com lideranças indígenas contemporâneas, são caminhos possíveis para o avanço nos debates públicos e políticos na área da saúde indígena no Brasil.

A saúde para os povos indígenas se estabelece para além do processo de cura singular. Deve ser compreendida no coletivo, no dia a dia, no encontro com a terra, no pertencimento integral à natureza, como parte e não como o outro.

A cosmovisão indígena, na qual a saúde é compreendida como um fator da coletividade, pode pautar o último comentário sobre a fotografia que dá o tom deste texto. Levar o pai idoso para ser vacinado contra a Covid-19, naquele contexto, pode representar também um compromisso com o coletivo, com a aldeia, tanto no que tange à precaução relativa ao contágio, quanto ao comprometimento com os anciãos do grupo, considerados os guardiões dos saberes ancestrais, tradicionais e linguísticos em muitas culturas indígenas.

Esta poderia ser apenas mais uma impressão sobre a imagem, a fotografia, a narrativa. No entanto, essa representação nos apontou caminhos possíveis para elucidar questões importantes sobre o debate acerca da saúde indígena de forma geral, sob o foco da observação, em perspectiva histórica, dos processos de vacinação em áreas indígenas do país.

*Carolina Arouca G. de Brito​​ é pesquisadora pós-doutoranda Inova Fiocruz no Observatório História e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

Confira as referências bibliográficas do artigo no site da COC/Fiocruz

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