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09/08/2024

Especialistas detalham características do 'Culicoides paraensis', o mosquito-pólvora

Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)


O Brasil enfrenta um surto de febre oropouche este ano, segundo o Ministério da Saúde. Ao todo, foram mais de 7 mil casos em 21 estados até 28 de julho. Recentemente foram confirmadas as duas primeiras mortes causadas pela doença e um óbito fetal causado por transmissão vertical do vírus (quando o patógeno passa da mãe para o feto durante a gestação). Oito casos de transmissão vertical estão em investigação, incluindo ocorrências de morte fetal e malformações congênitas, como microcefalia. O aumento nos casos de oropouche chamou atenção para um inseto pouco conhecido pela maior parte da população: o Culicoides paraensis, popularmente chamado de maruim ou mosquito-pólvora.

Insetos da espécie Culicoides paraensis, popularmente chamados de maruim ou mosquito-pólvora (Foto: Coleção de Ceratopogonidae do IOC/Fiocruz)
 

Apesar de o inseto, que se destaca pelo tamanho pequeno, ainda não ter sido capturado e identificado com infecção pelo vírus no surto deste ano, o maruim segue, desde a década de 1980, apontado como o principal vetor da febre oropouche. No Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), a Coleção de Ceratopogonidae guarda um acervo com cerca de 10 mil espécimes da família dos maruins, incluindo o neotipo do C. paraensis, um espécime escolhido por especialistas como referência para estudos do vetor.

Contribuindo para o enfrentamento do agravo, pesquisadoras do IOC elaboraram, recentemente, uma nota técnica para orientar ações de vigilância do vetor em resposta à demanda da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (SES/RJ). Em entrevista, a curadora da Coleção, Maria Luiza Felippe Bauer, e a curadora-adjunta, Maria Clara Alves Santarém, abordam as principais características do inseto. Confira a entrevista abaixo e conheça mais sobre o maruim. 

Qual a origem desse inseto e onde ele é encontrado? 

Maria Luiza: O Culicoides paraensis é, possivelmente, um inseto nativo das Américas. Ele foi descrito, pela primeira vez, no Pará, em 1905, por Emilio Goeldi. A nomeação da espécie faz referência ao estado. Atualmente, ele é encontrado na maior parte do continente americano, desde o sul dos Estados Unidos até a Argentina. No Brasil, acredita-se que esteja presente em todos os estados, apesar de só ter sido efetivamente registrado em 15 estados até o momento.  

Quais são as principais características desse inseto? 

Maria Clara: Todos os maruins são insetos muito pequenos. Medem cerca de 1,5 mm, podendo atingir 3 mm. Outra característica é a picada muito dolorosa. É um inseto que causa incômodo para a população quando há infestação. 

Em que tipo de ambiente ele vive? 

Maria Luiza: Em geral, o C. paraensis vive em florestas e em áreas rurais, principalmente onde tem plantação de banana. No Norte do país, o maruim também é encontrado em área urbana. Nas cidades da região amazônica, as áreas urbanas estão mais próximas das áreas silvestres e há essa urbanização do vetor. Em alguns municípios fora dessa região, vemos maruins em áreas urbanizadas próximas do ambiente rural.

Maria Clara:  Além disso, recentemente, temos indícios de  que o C. paraensis vem sendo encontrado em alguns centros urbanos do país, o que ainda necessita de confirmação. Ao que tudo indica, isso está ocorrendo em áreas onde houve modificação ambiental. Porém, é importante dizer que, até o presente, o maruim não é um vetor urbano, como o Aedes.

As entomologistas Maria Luiza Felippe Bauer (à direita) e Maria Clara Alves Santarém destacam a necessidade de identificar os locais de reprodução do inseto para tentar reduzir a infestação de maruins (Foto: Josué Damacena)

 

Onde o maruim se reproduz? 

Maria Clara:  A fêmea do maruim procura locais com bastante matéria orgânica e umidade para depositar seus ovos. Nas florestas, troncos de árvore em decomposição, cascas de frutas caídas no chão, bromélias, beiras de riachos, folhagem do solo são os locais preferenciais. Nos bananais, ela deposita os ovos no cepo da bananeira, parte do caule que fica quando a árvore é cortada para colheita da banana. Na área urbana, ela pode colocar ovos no quintal se houver qualquer tipo de matéria orgânica acumulada no chão. 

Como é o ciclo de vida do maruim? 

Maria Luiza: O ciclo de vida é parecido com o dos mosquitos. Nos criadouros, os ovos eclodem liberando as larvas que se alimentam da matéria orgânica. As larvas passam por quatro estádios de desenvolvimento, depois se tornam pupas, que não se alimentam e se transformam no inseto adulto. Com base em estudos de espécies Culicoides que ocorrem na Europa, o ciclo leva cerca de 30 dias do ovo até o inseto adulto. Porém, não há dados específicos sobre o tempo de desenvolvimento do C. paraensis

Quantos ovos a fêmea coloca? 

Maria Clara: Estudos sobre insetos do gênero Culicoides apontam que as fêmeas podem colocar de 30 a 450 ovos por postura, dependendo da espécie e da refeição sanguínea. Mas não há informação específica sobre C. paraensis.

O tamanho pequeno é uma característica marcante do maruim, que mede cerca de 1,5 mm (Foto: Coleção de Ceratopogonidae do IOC/Fiocruz)
 

Por que o maruim pica? 

Maira Luiza: Os maruins adultos, machos e fêmeas, se alimentam do néctar de plantas. Porém, as fêmeas do gênero Culicoides picam porque elas precisam de sangue para amadurecimento dos ovos.  

Que distância o inseto voa? Existe um horário mais frequente de picadas? 

Maria Clara: Ele tende a ficar perto do seu local de reprodução. O voo próprio dele fica em torno de 500 m. Mas, como o maruim é muito leve, ele é impulsionado pelo vento. Então, dependendo da velocidade do vento, ele pode alcançar até 2 km voando. 

Maria Luiza: O pico de atividade, em que os maruins se alimentam com maior intensidade, é no final da tarde. Mas isso não significa que eles estão impedidos de picar de manhã ou ao meio-dia, se esse for o horário em que o ser humano ou outro animal está presente no ambiente.  

Quais são as estratégias de controle desse vetor? 

Maria Luiza: Para controlar a população do vetor é preciso eliminar os criadouros. No caso do maruim, o ideal é remover o substrato onde ele se reproduz. Por exemplo, se for o cepo da bananeira, deve-se fazer o manejo do bananal. Se temos um quintal, devemos limpar o terreno, não deixando folhas e cascas de frutas caídas no chão ou outra matéria orgânica em decomposição. Isso pode reduzir a proliferação do inseto naquele local. 

Qual a recomendação para proteção individual? 

Maria Luiza: Quando possível, evitar as áreas com maior infestação e procurar não se expor no horário de pico do inseto, no fim da tarde. Usar blusa de manga longa, calça comprida e sapato fechado. Caso a pessoa precise entrar numa área infestada, é recomendado passar óleo corporal na pele. Como maruim é muito leve, ele fica grudado no óleo e não consegue picar. Se houver infestação perto de casa, fechar as janelas no horário de pico do vetor. Sabemos que algumas dessas medidas são difíceis de adotar, principalmente porque o período de maior transmissão da febre oropouche é no verão. 

Adianta usar repelente, inseticida ou tela? 

Maria Clara: Não. Tanto pela literatura científica como por experiência própria, sabemos que os repelentes não são eficazes contra maruim. Inseticidas também não funcionam. São compostos desenvolvidos contra mosquitos, como Aedes e Culex, que são insetos de uma família diferente. Como os maruins atravessam a tela comum, é recomendado utilizar telas de malhas finas, tipo voil, o que seria tão eficaz quanto fechar as janelas.

Como começou a transmissão da febre oropouche no Brasil? 

Maria Luiza: O vírus Oropouche foi descrito em 1955, a partir de um único paciente que apresentou a doença na comunidade Vega de Oropouche, em Trinidad e Tobago, no Caribe. Mas, naquele momento, não foi dada importância por ser um caso isolado. Em 1961, foi registrada a primeira epidemia urbana de oropouche, em Belém do Pará, que atingiu 11 mil casos. Nos anos seguintes, ocorreram várias epidemias em diferentes localidades do Pará. 

Acredita-se que a doença se espalhou no estado a partir da construção da Rodovia Belém-Brasília, que desmatou áreas de floresta. Os trabalhadores entraram na floresta, onde a doença circulava no ciclo silvestre, e foram infectados. A partir dos anos 80, passaram a ocorrer epidemias em outros estados do Norte e outros países, como Peru, Panamá, Colômbia, Equador e Guiana Francesa. Mais recentemente, houve registros na Bolívia e em Cuba. Provavelmente foi a locomoção humana que espalhou a doença, porque a população sempre se deslocou internamente na Amazônia, através dos rios, e o vetor está muito bem estabelecido nessa região.

Coleção de Ceratopogonidae guarda o neotipo da espécie Culicoides paraensis, entre outros tesouros (Foto: Josué Damacena)
 

Qual a diferença entre o ciclo silvestre e o ciclo urbano da febre oropouche? 

Maria Clara: No ciclo silvestre, animais como macacos, preguiças, roedores e até aves são reservatórios do vírus. O maruim é considerado como principal vetor e algumas espécies de mosquitos também transmitem o vírus. Os insetos se infectam ao picar um animal infectado e transmitem o vírus para outros animais através da picada. Quando o ser humano entra na floresta, ele pode ser infectado nesse ciclo. 

No ciclo urbano, o ser humano é o reservatório do vírus. Estudos realizados nos anos de 1980 indicam que o maruim é o principal vetor nesse ambiente. Ainda segundo esses estudos, o Culex quinquefasciatus, popularmente chamado de pernilongo ou muriçoca, pode atuar como vetor secundário. Os insetos se infectam ao picar um indivíduo infectado e transmitem o vírus para outros indivíduos através da picada.  

Neste ano, pela primeira vez, foi confirmada transmissão da doença em diversos estados fora da Amazônia. Se o vetor está presente em todo o Brasil, por que os casos de febre oropouche ficaram tanto tempo concentrados apenas na Região Norte?  

Maria Luiza: Biologicamente, podemos questionar se existem diferenças entre as populações de maruins, que poderiam tornar os vetores da Amazônia mais eficientes na transmissão da oropouche. Porém, existem outros fatores que podem contribuir para o padrão da doença. Em 2021, foi registrado surto de oropouche em departamentos extra-amazônicos no Peru. Esse ano, estamos vendo os casos fora da Amazônia no Brasil. 

Um fator que precisamos considerar é o deslocamento da população, que é cada vez mais intenso entre regiões e entre países. O vírus se desloca com os seres humanos. Se um indivíduo infectado chega a um local com presença do vetor, a transmissão da doença pode se iniciar. 

Maria Clara: Outro fator muito importante é o diagnóstico. Será que a doença não existia fora da Amazônia ou não estava sendo diagnosticada? Como os sintomas da febre oropouche são muito parecidos com os da dengue e as duas doenças ocorrem na mesma época do ano, casos da doença podem ser clinicamente diagnosticados como dengue. 

No ano passado, o Ministério da Saúde decidiu implantar um protocolo para diagnóstico de oropouche, que foi desenvolvido pela Fiocruz Amazônia, nos Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacens) dos estados. As amostras de pacientes com suspeita de dengue, com resultado negativo para o vírus dengue, passaram a ser testadas para o vírus oropouche. Com esses novos dados, podemos ter um cenário mais claro do que está acontecendo. 

O maruim permanece como principal vetor da doença? 

Maria Clara: Os dados disponíveis indicam que sim. A competência vetorial depende de inúmeros fatores, mas, até o presente, nenhum outro vetor tão ou mais competente que o maruim foi provado. Os principais estudos sobre transmissão da doença foram feitos nos anos 1980, após diversas epidemias na região amazônica brasileira. No ciclo urbano, estes trabalhos apontaram o maruim como vetor primário do vírus e o pernilongo como vetor secundário. Nos experimentos, foi observado que o maruim pode se infectar a partir de baixa carga viral no sangue, enquanto o pernilongo precisa de alta carga viral para se infectar. Além disso, naquele período, o maruim foi o inseto encontrado infectado com mais frequência nas áreas de epidemia. Nossos dados mostram que, em muitos locais onde a oropouche está sendo diagnosticada atualmente, já tínhamos relatos anteriores de infestação por C. paraensis, como na Bahia, Santa Catarina, Espírito Santo e a região serrana do Rio de Janeiro.   

O que compõe o acervo da Coleção de Ceratopogonidae do IOC? 

Maria Luiza: A Coleção tem cerca de 10 mil espécimes da família Ceratopogonidae. No acervo, temos insetos de gêneros hematófagos, em que as fêmeas se alimentam de sangue; predadores, em que as fêmeas se alimentam de outros insetos; e polinizadores, que se alimentam exclusivamente de néctar das plantas. É um dos acervos mais representativos dessa família na América Latina e contempla espécies de importância médica e veterinária. 

Que espécimes se destacam no acervo? 

Maria Clara: Os espécimes mais antigos são dos trabalhos de Adolpho Lutz, do começo do século passado. Temos, por exemplo, espécimes tipo, coletados por ele, que serviram de base para a descrição de 15 novas espécies de maruins entre 1912  e 1914. Também guardamos o neotipo do C. paraensis. É um espécime que foi designado pela curadora da Coleção, Maria Luiza, e pelo entomologista americano Willis Wirth como referência para a espécie, uma vez que o exemplar que serviu de base para a descrição feita por Emilio Goeldi, em 1905, foi perdido. 

Qual a relevância dessa coleção? 

Maria Luiza: Os espécimes depositados ficam disponíveis para consulta e podem contribuir para novas pesquisas. Além disso, a Coleção presta um serviço importante de identificação taxonômica. A partir da solicitação de Secretarias de Saúde ou instituições científicas, realizamos a identificação de espécies de maruins que estão provocando infestação ou foram coletados em pesquisas. Com base nos trabalhos da Coleção, já descrevemos 91 novas espécies de maruins, contribuindo para o conhecimento da biodiversidade desses insetos. 

No contexto atual da febre oropouche, temos atuado na identificação do vetor, em treinamentos e em consultorias para implementação da vigilância entomológica a partir de solicitações de secretarias de saúde. Recentemente, produzimos uma nota técnica em colaboração com a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (SES/RJ) para auxiliar os profissionais dos serviços de vigilância na identificação do C. paraensis.

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