12/12/2022
A vitamina B1 tem papel relevante para o bom funcionamento cerebral, e a deficiência crônica desse nutriente pode gerar uma série de problemas neurológicos e cognitivos. Isso ocorre porque a falta de B1 no organismo, por um período prolongado, leva à morte de neurônios e outras células, comprometendo funções de diferentes regiões do cérebro, inclusive o hipocampo, estrutura responsável pela constituição de novas memórias. Até então, a literatura científica indicava que as partes do cérebro lesionadas por falta da vitamina seriam irrecuperáveis, mas um estudo da Fiocruz Minas mostrou que é possível regenerar o hipocampo, associando a reposição de B1 a medicamentos anti-inflamatórios. Os achados foram descritos em um artigo publicado na revista Journal of Neuroinflammation, uma das mais influentes na área de neurociências.
Para chegar aos resultados, os pesquisadores usaram fatias do hipocampo de ratos, preservando, em laboratório, todos os componentes necessários ao funcionamento do tecido, exceto a vitamina B1. O objetivo era investigar os processos desencadeados pela falta do nutriente. A investigação mostrou que, a partir do 5º dia, estabeleceu-se a deficiência de B1, levando à morte de células que gastam mais energia, os neurônios. Essa primeira leva de morte celular liberou componentes no tecido, que ativaram o sistema imune e geraram um processo inflamatório potente que durou alguns dias. Quando a deficiência de B1 deixou essas células inflamatórias sem energia e elas começaram a perder atividade, a inflamação diminuiu. Já no 10º dia, ocorreu um pulso de neurogênese, que é a produção de novos neurônios.
“Vimos que as fatias do hipocampo são repovoadas com novos neurônios maduros, assim que a atividade das células inflamatórias diminui. Isso não dura muito tempo, mas ocorre uma janela temporal na qual ainda é possível recuperar o tecido”, afirma o pesquisador da Fiocruz Minas Roney Coimbra, coordenador do estudo.
Com esse resultado, os cientistas partiram para uma segunda etapa, com o intuito de verificar se a introdução de um anti-inflamatório seria capaz de desencadear a produção de neurônios, de forma a comprovar a relação causal entre a redução da inflamação e a neurogênese. Dessa forma, os pesquisadores introduziram o Resveratrol, composto de origem natural conhecido por atenuar inflamações e inibir a ativação de células pró-inflamatórias. Os resultados mostraram que o Resveratrol diminuiu a atividade das células de defesa das fatias de hipocampo, interrompendo a inflamação. Com isso, a neurogênese ocorreu antecipadamente.
“As células de defesa não chegam a morrer, mas a ação do Resveratrol é suficiente para inibir a inflamação e estimular o repovoamento de neurônios. Nosso estudo provou, então, que o hipocampo lesionado pela deficiência de vitamina B1 pode ser recuperado, por meio do controle da inflamação. Os resultados sinalizam um caminho para pesquisas de novas abordagens terapêuticas, que combinem a reposição de B1 a anti-inflamatórios capazes de diminuir a inflamação e permitir o repovoamento natural do tecido com novos neurônios”, explica Coimbra.
Clique para ampliar: infográfico explica o processo (em inglês).
Para uma validação adicional dos achados, a pesquisa contemplou também uma investigação dos genes envolvidos nos processos desencadeados. A análise da programação genética ao longo da série temporal mostrou que os genes mais ativos e menos ativos estavam de acordo com o que estava sendo observado na morfologia das fatias de hipocampo analisadas ao microscópio. Além disso, o estudo mostrou que há o envolvimento de mecanismos epigenéticos, que são as alterações químicas ocorridas nas proteínas às quais o DNA se enovela formando os cromossomos.
Segundo os pesquisadores, os resultados do estudo abrem perspectivas para o tratamento de doenças como a síndrome de Wernicke-Korsakof, que se manifesta como consequência da não ingestão má absorção ou metabolização incorreta de vitamina B1 e é caracterizada por uma combinação de encefalopatia e psicose, com déficits cognitivos, amnésia, distúrbios neuropatológicos com extensa neurodegeneração e disfunção celular e molecular no hipocampo e outras regiões do cérebro.
As causas da síndrome de Wernicke-Korsakof estão principalmente relacionadas ao alcoolismo, e a prevalência de sintomas clássicos associados à síndrome varia de 2 a 3% na população, podendo superar os 10% em alguns grupos. Vale ressaltar que o alcoolismo cresceu muito durante a pandemia, e a tendência é que ocorra um aumento da incidência da deficiência crônica de vitamina B1 e até da síndrome de Wernicke-Korsakof. As lesões causadas pela deficiência de vitamina B1 podem levar à morte do paciente. A taxa de letalidade é de 17 a 20% dos casos.
“Nosso estudo, ainda laboratorial, abre possibilidades para que, futuramente, o tratamento da doença possa não somente estancar a morte neuronal e a piora dos sintomas, por meio da reposição de B1, mas também permitir a recuperação de áreas cerebrais lesionadas”, destaca o pesquisador.
O trabalho foi desenvolvido em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Neurociências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sendo parte da dissertação de mestrado da estudante Larissa Cassiano.