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20/09/2022

Estudo aponta para profundas desigualdades na mortalidade de crianças no Brasil

Karina Costa (Cidacs/Fiocruz Bahia)


De janeiro a agosto de 2019, morreram 16 crianças indígenas de Alto do Rio Purus, no Acre, a mais nova tinha um mês. Todas por diarreia. O caso chama atenção e a ciência mostra que esta não é uma crise rápida, mas uma condição crônica decorrente da condição de vida e saúde das crianças indígenas brasileiras. De acordo com artigo publicado na edição de outubro do The Lancet Global Health, que tem base em estudo liderado pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia), as crianças indígenas têm 14 vezes mais chances de morrer por diarreia. Esse mesmo risco é 72% maior entre as pretas quando comparado com as chances em crianças nascidas de mães brancas.

Já é conhecido pela ciência que, assim como idosos, as crianças menores de cinco anos estão mais suscetíveis aos riscos decorrentes do lugar em que vivem, da qualidade da água, da falta de acesso ao saneamento básico, da falta de acesso a serviços de saúde, da escolaridade, entre outros fatores. E a pergunta para este estudo era, dentro dessas condições, será que ser criança e estar atravessada pelo fator etnia faz diferença no viver ou morrer? “O racismo ele opera como fator que vai determinar as condições de vida dessa criança, os anos de escolaridade da mãe, o local que nasce, por isso é importante ser considerado”, explica a pesquisadora associada ao Cidacs/Fiocruz Bahia que liderou o estudo, Poliana Rebouças. 

A análise observou 19.515.843 milhões de crianças nascidas entre 1º de janeiro de 2012 e 31 de dezembro de 2018. A partir dessa amostra expressiva coletada do Sistema de Nascidos Vivos (Sinasc), conferiu-se quantas e quais dessas crianças também apareceram em outro sistema, o Sistema de Mortalidade (SIM). Os dados extraídos em 2020 constataram que 224.213 crianças menores de 5 anos foram encontradas no SIM. “E o que a gente traz nesse estudo é que essas mortes, muitas vezes, ocorrem por causa evitáveis, como diarreia, desnutrição, pneumonia e gripe”, detalha Poliana. 

Como todo estudo epidemiológico, este também se refere ao risco comparado. Neste caso, o grupo usado como base de comparação é o das crianças nascidas de mães brancas, neste mesmo período, sempre em relação a outros grupos, como é o caso de crianças de mães pretas ou pardas. Para o caso das mães pretas, há 39% a mais de risco para que a vida seja interrompida antes mesmo dos 5 anos. Para as crianças filhas de mães pretas, quando se pensa na causa da morte, há duas vezes mais risco de morrer por má nutrição. 

A pesquisa também observou as causas de morte: diarreia, má nutrição e pneumonia são os desfechos mais associados à morte de crianças com menos de 5 anos. Se a diarreia afeta 14 vezes mais a vida das crianças indígenas, a má-nutrição chega a 16 e a pneumonia a 7 vezes. Entre as mulheres pretas, também há risco de que percam seus filhos por estes desfechos. Esses riscos foram quantificados em 72% (diarréias), 78% (pneumonia) e 2 vezes mais (má-nutrição). Tudo isso em comparação com as crianças nascidas de mães brancas. Quando pensado em causas acidentais, as crianças filhas de mães pretas têm 37% mais riscos de morrerem do que as de mães brancas. Já entre os indígenas, esse risco é aumentado para 74%. 

Como são essas mães?

Entre as variáveis observadas estava o status em termos de relacionamento dessas mães: 52% das mulheres pretas apresentavam estado civil solteira, entre as indígenas essa porcentagem é de 43%, as pardas 45% e entre as brancas 36%. Além de vivenciarem mais a maternidade solo, elas integram também uma fatia importante das que têm quatro filhos (três filhos vivos na hora do parto e o que está nascendo). Esse grupo é liderado pelas indígenas que têm mais filhos: elas são 34%, as pretas 14%, as pardas 12% e as brancas 6%.   

Um fator importante para a sobrevivência das crianças e das mães é que realizem pelo menos seis consultas de pré-natal. Por isso, a pesquisa observou quem realizou menos de três consultas; o grupo que menos esteve sob estes cuidados de saúde foi o das mães indígenas, em que quase um terço (29%) delas fez metade do recomendado pelas organizações de saúde. Essa proporção entre pretas e pardas foi igual, 11%, e já entre as brancas, apenas 5%. Reforçando o que já foi documentado em outras pesquisas: as desigualdades raciais das barreiras de acesso aos serviços de saúde materna e suas graves consequências para a saúde materno-infantil.

O estudo indica que faltam recursos para que reduzam as desigualdades étnico-raciais para as populações indígenas, negras, pardas e pretas e isso resulta em uma realidade desfavorável para estes grupos. “Já existem as políticas Nacional de Saúde Integral do Povo Indígena desde 2002 e da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra desde 2006, mas elas precisam ter mais recursos para que sejam implementadas e o estudo mostra essa necessidade”, completa Poliana Rebouças.

A pesquisa explica que, no Brasil, mães negras, pardas ou pretas ,e indígenas vivem em condições desfavoráveis, com menor escolaridade, menor frequência ou início tardio do pré-natal e residem mais distantes dos serviços de saúde durante o parto. Essas circunstâncias de vida resultam em maior risco de desfechos negativos, como baixo peso ao nascer, nascer pequeno para a idade gestacional, prematuridade e aumento da incidência de doenças evitáveis, o que aumenta o risco de mortalidade infantil.

A prematuridade também é um fator de maior prevalência entre as crianças indígenas e está presente em 15% dos nascimentos. Isso significa que, para cada dez bebês, mais de um nasceu antes do tempo, o que afeta diretamente o seu desenvolvimento. Estes bebês indígenas nasceram com menos de 2,5 kg, em 90% dos casos. 

O estudo usou informações do bebê e das mães que são disponibilizadas pelo Sinasc, tais como raça/cor, local em que vive, escolaridade da mãe, se está em um relacionamento estável no momento do parto, quantas consultas de pré-natal foram realizadas etc. Para criar grupos comparativos, é preciso avaliar as variáveis, ou seja, essas informações que vão nos formulários de saúde. Neste caso, as informações constam na Declaração de Nascido Vivo assinado por um (a) médico (a), a mesma que serve para fazer o Registro de Nascimento do bebê e lhe dar o status de cidadão brasileiro. 

Integração de Dados

No Cidacs/Fiocruz Bahia é feita uma integração de dados. O que significa? Quer dizer que se busca encontrar informações de uma mesma pessoa em duas ou mais bases de dados (sistemas de informações). Neste estudo, a partir de um plano que os cientistas traçaram, as 19 milhões de crianças nascidas entre 1º janeiro de 2012 e 31 de dezembro de 2018 e que constam no Sistema Nacional de Nascidos Vivos foram “buscadas” também no Sistema de Mortalidade (SIM) e 224.213 estavam lá.

Essa busca é conhecida como linkage, que vem do linkar, unir. Essa parte não passa pelo cientista de saúde e sim pela Plataforma de Dados do Cidacs/Fiocruz Bahia, que atua desde a seleção do que se busca em cada sistema de informação até a extração da base. Ou seja, a entrega das informações alinhadas. Uma vez que as informações não foram pensadas na pesquisa científica, o desafio começa desde as diferenças como cada dado é solicitado pelo usuário. Por exemplo: um sistema pede filiação, e no outro, nome da mãe e os dois são a mesma variável. Tais diferenças são pensadas pela Curadoria de Dados do Cidacs/Fiocruz Bahia e passam por processamento da equipe de Produção de Dados, engenheiros, cientistas e estatísticos. 

Antes mesmo de realizar, o Cidacs/Fiocruz Bahia precisa planejar e muitas vezes criar uma forma para resolver problemas científicos. Para a integração dessas bases, foi usado o algoritmo Cidacs-RL, desenvolvido por ex-bolsistas do Centro. Com base nos conhecimentos de epidemiologia, são separados os grupos, neste caso, o tempo de nascimento, como ter menos de 27 dias, ter menos de um ano de vida e estar entre um ano e 4 anos, 11 meses e 29 dias. Então cada grupo é comparado entre semelhantes para que a comparação seja adequada ao que a ciência já diz sobre cada estágio de vida. Uma vez que recém-nascidos não poderiam ser comparados a uma criança de 4 anos, por exemplo. E cada um dos estágios são assim definidos pelos conhecimentos consolidados que a ciência da saúde reúne sobre este grupo etários. 

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