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24/01/2018

Estudo avalia formação de agentes de combate a endemias

Fiocruz Minas


Todos os dias, agentes de combate às endemias (ACE) que atuam nos Programas de Saúde da Família visitam casas, terrenos baldios, indústrias e estabelecimentos comerciais, tendo como uma das missões identificar focos de doenças. Esses trabalhadores, juntamente com os agentes comunitários de saúde (ACS), são atores essenciais para o controle de uma série de arboviroses, entre elas a dengue e a febre amarela. Com uma tarefa tão importante, é de se esperar que os ACE sejam altamente qualificados. Entretanto, uma pesquisa de doutorado da Fiocruz Minas mostrou que, embora existam iniciativas voltadas para a capacitação desses profissionais, não há uma política de formação de longa duração, capaz de fornecer, com consistência, toda a gama de conhecimentos que a função requer. O estudo revelou, ainda, a forma como esses trabalhadores se enxergam, se identificam e como pensam ser vistos pela sociedade.

A pesquisa se dividiu em duas etapas: análise de documentos e entrevista com os ACE. Para realizar a primeira etapa, os pesquisadores se debruçaram sobre os acervos eletrônicos do Ministério da Saúde e do Ministério da Educação, visando identificar conteúdos relacionados à formação dos ACE, entre 2001 e 2016, tendo como foco o tema dengue. No total, 14 documentos foram analisados.

“De um modo geral, pôde-se observar que não há uma política de formação sendo executada de forma permanente dentro do contexto da dengue. O que existem são ações conjunturais, insuficientes uma vez que sabemos que doenças como a dengue têm uma relação estreita com os determinantes sociais e, para combatê-las, é necessário mais que medidas pontuais”, afirma a pesquisadora Janete Evangelista, responsável pelo estudo que é fruto de sua tese de doutorado.

De acordo com a pesquisadora, a análise mostrou que o conteúdo disponibilizado privilegia o controle de vetores, sobrepondo-se a uma política de educação profissional consolidada. Além disso, percebeu-se uma preponderância de linguagem técnica e biomédica,  distante da realidade dos ACE.  Os documentos indicaram ainda serem atribuídas a esses profissionais atividades que exigem mais conhecimento do que vem sendo oferecido, como por exemplo orientar a população em ações de educação em saúde.

Entrevistas

A inexistência de um sistema sólido de formação profissional, constatada pela análise documental, pôde ser confirmada por meio entrevistas com os ACE. Nesta segunda etapa do trabalho, as pesquisadoras conversaram com profissionais que atuam na prevenção e controle da dengue no distrito de Eldorado, localizado no município de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Ao todo, foram entrevistados 30 ACE, no decorrer de 2016, por meio da técnica de grupo focal, que convida os participantes a falarem de temas específicos. Trajetória de formação e identidade foram os assuntos propostos.

Durante os encontros, os entrevistados relataram que se sentem inseguros para realizar suas atividades por não contarem com um programa sistematizado e regular de qualificação. Muitos afirmaram que não receberam um curso básico introdutório e, por isso, não têm clareza sobre a prescrição mínima de suas tarefas. Boa parte deles declarou ter sido orientada de forma informal pelos próprios colegas.

“Somente os trabalhadores que estão há mais tempo na função disseram ter passado por treinamento. Já os novatos relataram que o aprendizado se deu na prática cotidiana, numa espécie de ‘telefone sem fio’, em que os mais antigos repassam as informações para os mais novos”, conta Janete.

Segundo a pesquisadora, os entrevistados também afirmaram desconhecer conteúdos relacionados à dengue disponibilizados online. Relataram ainda que, no ambiente de trabalho, não têm acesso à internet.

“Por conta desses relatos, um dos desdobramentos do nosso estudo será a criação de um portfólio de fontes sobre dengue e, para isso, já fizemos um levantamento dos sites do Ministério da Saúde, da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais e Secretaria Municipal de Saúde de Contagem, que abordem a temática. Compilamos os dados encontrados e, em breve, vamos disponibilizar o portfólio para que os ACE possam consultar e buscar informações ”, revela a pesquisadora.

Identidade

O estudo apontou ainda que a falta de uma formação consistente reflete na forma como os ACE se percebem e são reconhecidos. Tal fato impacta no processo de formação de sua identidade profissional. Pela falta de padronização de suas atividades, precário processo de integração com as equipes de saúde da família, dentre outros fatores, cada profissional forma uma imagem individual a respeito do seu trabalho. Em geral, todos apresentam baixa autoestima e desmotivação.

Embora tenham declarado que consideram importante as atividades desempenhadas  por eles, os ACE disseram que não se sentem valorizados. Durante as entrevistas, eles destacaram a falta de infraestrutura, a precariedade do vínculo de trabalho e também as diferenças no tratamento entre os trabalhadores concursados e os contratados via CLT.

“Essa informação presente nos relatos já tínhamos constatado também pela análise da documentação: grande variação de contratos, regimes de trabalho diversificados e diferenças marcantes de escolaridade, gerando, com isso, uma dificuldade na construção de sua identidade profissional”, comenta Janete.

Em relação à infraestrutura, os entrevistados fizeram uma série de observações, entre elas a falta de crachá, questão que reflete diretamente na forma como eles pensam ser vistos pela sociedade. “Eles revelaram um sentimento de serem os não-identificados, os quase invisíveis ao setor saúde nesse contato com a população”, conta a pesquisadora.

Outro aspecto discutido durante os grupos focais foi a forma como os ACE são designados pela população. As mulheres disseram que são chamadas de ‘meninas da dengue’ ou ‘dengosas’; os homens são conhecidos como ‘rapazes da dengue’. “A questão da nomenclatura também foi identificada na análise documental. Os próprios órgãos oficiais usam uma variedade de nomes para designar esse tipo de profissional e isso interfere na identidade deles e na forma como desempenham o trabalho”, observa Janete.

Segundo a pesquisa, a questão predominante nos relatos foi a sensação de impotência ao lidarem com a situação da dengue e outras arboviroses. Os entrevistados declararam não se sentirem preparados para dar as respostas que a população precisa.

Para a pesquisadora, o estudo deixa claro que ações políticas mais integradas e intersetoriais podem auxiliar na legitimação das práticas e políticas de formação e trabalho dos ACE, auxiliando-os a se reconhecerem como pertencente a uma categoria profissional. “ E o mais importante: a institucionalização de uma sólida política de educação profissional direcionada ao ACE pode contribuir para um avanço significativo na prevenção e no controle da doença e vetores”, diz.

Intitulada Qualificação e educação profissional no contexto da dengue: a perspectiva dos agentes de combate às endemias, a pesquisa teve orientação de Virgínia Schall (in memorian) e Denise Nacif Pimenta. O estudo deu origem a dois artigos, um deles já publicado e disponível aqui.

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