03/02/2021
Um estudo pioneiro utilizou o sequenciamento genômico de amostras de Mycobacterium tuberculosis para avaliar a resistência de povos indígenas a medicamentos para tuberculose. Publicada na Scientific Reports, revista do grupo Nature, a pesquisa revelou elevada frequência de polimorfismos associados à resistência aos principais fármacos utilizados no tratamento. O artigo, intitulado Identification of a predominant genotype of Mycobacterium tuberculosis in Brazilian indigenous population, conta com a participação dos pesquisadores Paulo Basta e Reinaldo Santos, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), que integram o grupo de pesquisas sobre tuberculose entre os povos indígenas Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul, desenvolvidas pelo grupo de pesquisa Epidemiologia e Controle da Tuberculose em Áreas Indígenas, e financiadas pelo Programa de Inovação Científica da Fiocruz.
A pesquisa utilizou o sequenciamento total do genoma (Whole Sequence Genome – WGS) em amostras de Mycobacterium tuberculosis isoladas de indígenas que adoeceram de tuberculose no Brasil, nos últimos anos. Os principais resultados do sequenciamento total de 66 amostras revelam elevada frequência de polimorfismos associados à resistência aos principais fármacos utilizados no tratamento, apontando não somente para a emergência de um grave problema de saúde pública, como também para uma ameaça iminente às estratégias de controle da TB, usualmente empregadas, entre populações reconhecidamente vulneráveis.
Ademais, a análise genética das cepas sugere que houve introdução de linhagens de M. tuberculosis distintas dos padrões predominantemente observado nas Américas, nos dias atuais. Essa situação seria esperada em comunidades isoladas. “Todavia, como os Guarani e Kaiowá vivem em territórios pequenos e com alta densidade demográfica, considerados como reservas, e localizados próximos às cidades na região da fronteira com o Paraguai, nossas descobertas revelam o nível extremo de marginalização e preconceito sofrido por este grupo indígena, uma vez que as “impressões digitais” dos isolados de M. tuberculosis estudados parecem amplamente divergentes de outras investigações realizadas no país, nas quais foram utilizados métodos genômicos de alta resolução”, afirmam os pesquisadores.
O artigo é fruto de uma parceria estabelecida com uma equipe da Michigan State University (MSU), instituição de ensino e pesquisa norte americana. Contou ainda com a colaboração do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) e do Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen), ambos de Mato Grosso do Sul, além do apoio do Instituto Adolfo Lutz (IAL) de São Paulo e de pesquisadores da Fiocruz. Compõem a equipe de autores Eunice Cunha (Lacen); Vera Simonsen e Lucilaine Ferrazoli (IAL), Syeda Hadi, Evan Brenner, Janani Ravi e Srinand Sreevatsan (MSU), Ida Viktoria Kolte, Daniel Antunes Villela, Reinaldo Souza-Santos e Paulo Basta (Fiocruz).
O estigma e o preconceito associados à TB se expressam de várias formas e colaboram sobremaneira com a manutenção da transmissão da doença na comunidade, constituindo ainda obstáculo que retarda o diagnóstico precoce e dificulta o início do tratamento, em tempo oportuno. A fim de minimizar esse impacto é essencial aperfeiçoar as estratégias de comunicação e as relações entre a população e os serviços de saúde, além de sensibilizar a sociedade envolvente. A extensão e os impactos do estigma e do preconceito na transmissão e no tratamento da TB entre os Guarani e Kaiowá podem ser melhor compreendidos em outro artigo do grupo de pesquisa intitulado The contribution of stigma to the transmission and treatment of tuberculosis in a hyperendemic indigenous population in Brazil, recentemente publicado na revista PlosOne.
Neste segundo artigo, a equipe de autores foi composta por Ida Viktoria Kolte, Islândia Maria Carvalho de Sousa e Paulo Basta (Fiocruz), além de Lucia Pereira e Aparecida Benites, que são pesquisadoras indígenas representantes das etnias Guarani e Kaiowá e residentes nas aldeias investigadas. A participação de ambas foi vital para que as entrevistas com os doentes e familiares tivessem o nível necessário de aprofundamento e fossem realizadas na língua materna, o Guarani. Somente desta maneira foi possível a equipe definir as categorias de análise empregadas no estudo e ter uma real dimensão do fardo e das consequências do estigma, do preconceito e da discriminação nas condições de vida e saúde, nas comunidades estudadas.