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28/09/2020

Estudo reconstitui pesquisas de Anthony Leeds através de arquivo

Karine Rodrigues (COC/Fiocruz)


Favela, bunker de bandido. A chamada da reportagem publicada em um grande portal de notícias no mês passado gerou reação imediata de quem sabe que esses territórios não são redutíveis à dobradinha pobreza e marginalidade. A batida associação, na verdade, não é de hoje, a despeito do empenho de pesquisadores que buscam compreender a complexidade desses aglomerados urbanos, como fez o antropólogo norte-americano Anthony Leeds (1925-1989).

Análise empreendida pela cientista social Rachel Viana em tese defendida no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) evidencia que o antropólogo e a cientista política Elizabeth Leeds, sua esposa e principal colaboradora, foram os primeiros a fazer, empiricamente e nas favelas, um contraponto às teorias da cultura da pobreza e da marginalidade. Rechaçaram o entendimento de que os moradores da favela estavam isolados, eram incapazes de se adaptar à vida urbana e de se organizar politicamente.

Naquele período, as duas teorias estavam em voga entre cientistas, administradores e gestores que traçavam as políticas públicas dirigidas às populações de baixa renda, no Brasil e nos Estados Unidos. Em especial, os moradores de assentamentos não controlados, com posse indefinida, como as favelas. Os Leeds, porém, foram na contramão, por meio de pesquisas que incluíram a observação participante e a moradia no campo. No caso, no Jacarezinho, na década de 1960. 

“Nas favelas há trabalho, há circulação de um volume considerável de vários tipos de capitais, há criatividade. A persistência nessa associação perversa entre favela e pobreza e criminalidade serve também a outros propósitos de vários mercados: o eleitoral, o imobiliário, o de drogas, de distribuição de serviços que são deveres do Estado, entre outros. Isso para não falar no caráter racista dessa associação entre favela e pobreza e criminalidade”, frisa Rachel. 

Estudo reconstitui contexto histórico de etnografia de Leeds

Há quase uma década, a pesquisadora se debruça sobre o tema, ao investigar os documentos dos arquivos de Anthony Leeds, divididos entre a Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e os National Anthropological Archives, em Maryland, nos Estados Unidos. Além de ter feito a identificação preliminar do material doado por Elizabeth à Casa de Oswaldo Cruz, iniciou uma observação mais sistemática do material a partir de 2012, ao iniciar o mestrado.

No doutorado, Rachel investigou as condições de produção do conhecimento sobre a etnografia do Jacarezinho realizada em 1960, a primeira com foco nas favelas do Rio, levada a cabo pelo casal Leeds e sua rede de pesquisadores. O trabalho na favela da zona norte do Rio foi uma das principais referências para A sociologia do Brasil urbano (1978), obra seminal para os estudos urbanos dedicados aos chamados assentamentos não controlados, e pioneira no campo da sociologia e da antropologia urbana no Brasil. 

Os Leeds se conheceram no Brasil em 1965. Na ocasião, Elizabeth prestava serviço para o Peace Corps, uma das agências internacionais que realizava programas de cooperação técnica em busca da promoção do desenvolvimento de comunidades em áreas empobrecidas. O casal voltou para os Estados Unidos e retornou ao Rio nos verões de 1966 a 1968. Na ocasião, moraram no Jacarezinho. Em 1969, mudaram-se para Copacabana, na zona sul do Rio.

A tese discute as principais questões debatidas pela antropologia dos idos de 1960, quando a Guerra Fria e as ditaduras militares na América Latina davam o tom. Entre elas, a atuação das agências internacionais de cooperação técnica dos EUA no âmbito das políticas públicas destinadas à população das favelas do Rio; a transformação dos voluntários do Peace Corps em pesquisadores das favelas; além de personagens, eventos políticos e disputas no Jacarezinho.

Para responder às questões de pesquisa da tese, Rachel reconstruiu o contexto histórico e intelectual dessa etnografia, com base nas notas de campo elaboradas pelos Leeds e sua rede de pesquisadores e colaboradores. Figuram, entre os registros, relatórios de trabalho dos voluntários do Peace Corps, cartas, jornais, depoimentos orais, panfletos, recibos de pagamento e até pedaços de papel manuscritos. A reconstrução foi possível graças a um minucioso trabalho análise e de cotejamento da variada documentação.

Diálogo próximo com moradores marcou trabalho de Leeds

Rachel demonstra que a etnografia realizada pelos Leeds, ao envolver os jovens voluntários do Peace Corps e moradores do Jacarezinho no processo de produção do conhecimento, inova na relação do antropólogo com a rede de pesquisadores e colaboradores, antes passivos. No Jacarezinho, eles assumiram a condição de sujeitos ativos na construção do conhecimento.

“Esta prática científica de cunho dialógico e colaborativo foi um dos aportes trazidos pelos Leeds nas ciências sociais brasileiras dedicadas ao urbano e às favelas”, ela escreve na tese intitulada Encontros etnográficos e antropologia em rede: a favela do Jacarezinho e a pesquisa de Anthony e Elizabeth Leeds na década de 1960. O estudo ganhou o Prêmio Oswaldo Cruz de Teses 2020, na área de Ciências Humanas e Sociais.

A partir dessa troca de experiências, o casal promoveu outra mudança na prática científica da antropologia e da etnografia ao fazer uma análise comparativa das notas de campo de seus colaboradores para consolidar a perspectiva comparativa. Rachel demonstra que assim foi construída a base empírica para fazer um contraponto às teorias da cultura da pobreza e da marginalidade, por vezes usadas como justificativa para as políticas remocionistas do período.

“Sem esse tratamento mais simétrico com os moradores, essa interlocução de igual para igual, essa busca por uma interlocução mais equânime, os Leeds não teriam dado o passo principal para uma mudança na antropologia”, avalia a pesquisadora, destacando a interação entre a rede científica, formada pelo casal e pelos pesquisadores, e as redes do campo, formada por moradores.   

Favela como solução à falta de políticas de habitação

Sobre a justa grita despertada pela reportagem publicada que reduziu a Maré, na zona norte do Rio, a bunker de bandidos porque concentraria mais de 240 foragidos da Justiça, a pesquisadora chama atenção para as intenções por trás dessa recorrente associação: 

“O poder público e a opinião das classes mais abastadas insistem em associar favela com pobreza e criminalidade, sem querer enxergar que o real problema não é a favela, é a falta de uma política de habitação justa, decente, e a falta de acesso a serviços sociais básicos públicos, gratuitos e de qualidade.” 

Segundo Rachel, os Leeds mostraram ainda que, muitas vezes, a favela é a melhor solução para moradia de baixa renda, considerando as milhares de pessoas que habitam cabeças de porco ou moram na rua. “Atualmente, estamos vendo isso de forma mais gritante com a pandemia. Muitos ficaram desempregados e sem ter onde morar. Foram obrigados a deixar suas casas nas favelas para morar na rua. Essa realidade sempre esteve presente. Agora piorou”, conclui. 

Vencedora do Prêmio Oswaldo Cruz de Teses 2020, concedido pela Fiocruz para trabalhos de elevado valor para o avanço do campo da Saúde nas diversas áreas temáticas de atuação da instituição, Rachel diz ter sentido uma emoção inenarrável ao saber da honraria. 

“Estou nas nuvens porque esse prêmio significa muito para mim”. E observa que a premiação não é uma conquista exclusivamente pessoal, mas de todos os que caminharam junto com ela durante o período do doutorado, como a orientadora Nísia Trindade Lima, familiares, alunos da escola da rede pública estadual onde ela leciona e todas as mulheres, que estudaram ou não com ela, cientistas ou não. “Quero dar ênfase à questão de gênero porque nós, mulheres, passamos por várias violências de gênero todos os dias. E comigo não foi diferente. Pra mim, a premiação não é uma conquista minha, é uma conquista política de todas as mulheres, todas nós”, desabafa. 

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