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09/10/2019

Ferrinho: ‘pesquisadores não podem abdicar dos seus deveres de cidadania’

Ricardo Valverde (Agência Fiocruz de Notícias)


Sexto pesquisador, em 15 anos, a receber o título de Doutor Honoris Causa da Fiocruz, o médico Paulo Lyz Ferrinho foi diretor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, instituição à qual continua vinculado. Em entrevista, ele diz que recebe a homenagem com satisfação, humildade e senso de responsabilidade. Nascido em Moçambique em 1956, Ferrinho estudou e trabalhou muitos anos em países africanos e viveu na África do Sul durante o cruel regime do apartheid, que segregava os negros. Naquele país ele afirma ter visto “a força da saúde no combate às injustiças e na transformação das sociedades”.

O médico Paulo Lyz Ferrinho foi o sexto pesquisador, em 15 anos, a receber o título de Doutor Honoris Causa da Fiocruz (foto: Peter Ilicciev)

 

AFN: Como recebe a homenagem da Fiocruz?

Paulo Ferrinho: Com muita satisfação. Com humildade, por me ver no mesmo panteão dos outros laureados com o Doutoramento Honoris Causa da Fiocruz. Partilho com eles uma visão de saúde que reconhece a importância dos determinantes socais da saúde na consecução da visão de saúde para todos, de uma forma equitativa. Com sentido de responsabilidade, acrescida de contribuir ainda mais para o reforço das parcerias que nos ligam ao Brasil e aos outros Estados Membros da CPLP.

AFN: Pode citar os principais pontos de sua trajetória acadêmica e profissional?

Ferrinho: Com 63 anos, olhando para o meu percurso, apercebo-me que a academia teve um papel estruturante de toda a minha vida profissional. A minha carreira acadêmica teve início formal em 1992, quando ingressei, pela primeira vez, nos quadros do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) da Universidade Nova de Lisboa (UNL) como assistente convidado.

Já tinha, no entanto, exercido funções acadêmicas, na África do Sul – onde fiz grande parte da minha formação profissional (uma licenciatura, dois mestrados, duas especializações e um doutoramento) –, com caráter suplementar a uma atividade profissional intensa, clínica, de gestão e de saúde pública; as funções académicas eram então vistas por mim como uma forma de sistematizar a minha aprendizagem, adquirida nos meus contatos do dia-a-dia com os doentes e seus ambientes – familiar, comunitário e de trabalho – ao mesmo tempo que contribuía para a dos outros.

Uma das características marcantes do meu percurso tem sido esta convivência interativa entre a prática clínica, a administração pública, a vida acadêmica e a cooperação para o desenvolvimento. O meu trabalho – clínico, acadêmico ou de saúde pública – tem tido como eixos orientadores, desde as suas raízes em África, a preocupação temática com a saúde materno-infantil e reprodutiva, os sistemas de saúde africanos, assim como os que neles trabalham e os que a eles recorrem. Mais recentemente comecei a praticar medicina do viajante.

Estes vetores desenvolveram-se e firmaram-se no meu pensamento durante os primeiros anos da minha atividade clínica em África, clínica essa centrada essencialmente na saúde materno infantil. Vem também destes anos de atividade clínica o meu interesse pelas doenças infeciosas, refletido nos trabalhos que tenho publicado sobre Aids, tuberculose, malária, diarreias infantis e sarampo, entre outros, interesse esse que me levou a especializar em medicina tropical. É igualmente sobre estes temas que se debruçam os meus primeiros trabalhos de epidemiologia.

Sempre considerei a epidemiologia não só como um elemento sistematizador do meu pensamento e práxis profissional, mas também como um instrumento de apoio à decisão clínica, à prática da saúde pública e à atividade gestionária. Foi ela que, na minha procura de apoios metodológicos, me levou a contactar o diretor do Departamento de Saúde Pública da Universidade de Witwatersrand, John Gear, em Joanesburgo, na África do Sul, contato decisivo para optar pela saúde pública como segunda área de especialização (a primeira foi a medicina tropical). Trabalhei nesse tempo como consultar de epidemiologia do Medical Research Council, na África do Sul.

Foi a epidemiologia que me levou a Londres, como British Council Scholar, para aprofundar os meus estudos de epidemiologia na London School of Hygiene and Tropical Medicine com Richard Hayes. Estagiei ainda no Institute of Child Health, Tropical Child Health Unit, com Gulamabbas Juma (Zef) Ebrahim, (bem conhecido no Brasil), onde tive a oportunidade de conhecer o lendário pediatra David Morley – tudo isto no fabuloso ano de 1989 – em que nasceu a minha filha Rosa, caiu o muro de Berlim, foi libertado Nelson Mandela e tiveram lugar as primeiras eleições presidenciais democráticas no Brasil em 29 anos, depois do fim do regime militar em 1985.

A epidemiologia mantém-se, até hoje, como um dos polos da minha concentração profissional, o que se tem refletido na minha atividade docente, no desempenho das chefias que assumi (chefe da Divisão de Epidemiologia e Diretor dos Serviços de Informação e análise na Direção-Geral da Saúde, Ministério da Saúde de Portugal) e noutros desafios profissionais que aceitei nos anos mais recentes, nomeadamente como dirigente da Associação Portuguesa de Epidemiologia. Ao alargar dos meus horizontes profissionais (da clínica à gestão de unidades de saúde e à administração pública), correspondeu uma maior necessidade de compreender os fatores que afetam não só o desempenho institucional, mas também a funcionalidade dos sistemas de serviços de saúde em que essas instituições estão integradas.

Daí o meu interesse pela investigação em sistemas de serviços de saúde, nomeadamente na gestão da informação e do conhecimento, no planeamento estratégico e na gestão da mudança. O desempenho dos sistemas de serviços de saúde é, acima de tudo, determinado pelo desempenho dos seus recursos humanos. Por esta razão, o desenvolvimento e desempenho dos recursos humanos na saúde, tornou-se um tema central do meu trabalho académico, de consultoria e de assistência técnica, levando ao estabelecimento no IHMT, com o apoio do professor Gilles Dussault, de um Centro Colaborador da OMS para Políticas e Planeamento da Força de Trabalho em Saúde, Centro que hoje coordeno.

Em suma, a evolução da minha trajetória académica e profissional progrediu: de uma perspetiva biomédica da saúde para uma perspetiva sistêmica de crescente complexidade; de uma abordagem centrada na doença para uma abordagem cada vez mais centrada nas pessoas e no seu ambiente local; de uma preocupação com o “local” para a compreensão da importância do global; para uma prática cada vez mais depedente de múltiplas parcerias, em que a Fiocruz sobressai; de uma abordagem positivista para uma abordagem cada vez mais fenomenológica; de uma prática modernista da gestão e administração para um pós-modernismo menos determinista e mais contextual.

AFN: Como pesquisador, como vê a situação da ciência no mundo atual, em que vemos ataques à vacinação e muitos apoiando conceitos como o da “Terra plana”?

Ferrinho: Os pesquisadores não podem abdicar dos seus deveres de cidadania. Estes deveres incluem compromissos, tais como fortalecimento da saúde na agenda do desenvolvimento sustentável; promoção da divulgação científica e a comunicação como direitos da sociedade; e diálogo com os dirigentes dos sistemas de saúde para que a ciência informe as políticas, as estratégias, as intevenções adotadas e as práticas profissionais. A ausência deste compromisso cria oportunidades de desinformação como as que mencionou.

AFN: O senhor morou na África do Sul durante o cruel regime do apartheid. Que lições tirou dessa experiência?

Ferrinho: Na África do Sul pratiquei medicina em dois contextos. Em Gelukspan, num hospital rural no Bophuthatswana e no Alexandra Health Centre and University Clinicc, em Alexandra, uma township (favela) nos subúrbios de Joanesburgo, como clínico e membro de órgãos diretivos de ambas as unidades sanitárias. Nos dois contextos, mas em particular na passagem por Alexandra, enfrentei a dimensão política da saúde.

Em Alexandra, entre 1985 e 1991, tive a oportunidade de trabalhar num centro de saúde, estruturado como uma organização da sociedade civil, totalmente dependente de mecenatos estrangeiros e que apoiava fortemente a luta contra o apartheid. Foi um exemplo, marcante para mim, da força da saúde no combate às injustiças e na transformação das sociedades.

AFN: Que mensagem envia para aqueles que sonham ser pesquisadores?

Ferrinho: Não esqueçam os valores! Façam ciência de excelência, local e globalmente relevante, com impacto social, alinhada com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, contribuindo para a construção de um mundo justo, sem pobreza, em paz e prosperidade.

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