11/09/2024
Karine Rodrigues (COC/Fiocruz)
Em um dia rotineiro de trabalho, o pesquisador Wladimir Lobato Paraense (1914-2012) estava em seu laboratório quando foi surpreendido pela visita de Theodosius Dobzhansky (1900-1975), considerado o maior geneticista do mundo à época. Tomou um susto ao se deparar com o homem que ele conhecia apenas por livros e considerava “um guru”. Sem anúncio prévio, o pesquisador ucraniano-estadunidense decidira conhecer, in loco, a sistemática de moluscos desenvolvida pelo brasileiro, inovadora no uso de conhecimentos de genética, área ainda incipiente no Brasil.
Lobato percorreu vários países do continente americano em busca de moluscos de água doce, exemplares que foram importantes para a produção de conhecimento na área (foto: Acervo Casa de Oswaldo Cruz)
Lobato, cujo acervo está agora disponível para acesso público no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), detalha o episódio em entrevista concedida em 1998 às pesquisadoras Anna Beatriz de Sá Almeida e Magali Romero Sá, atualmente vice-diretora de Pesquisa e Educação da Casa. Na ocasião, Dobzhansky teria ficado encantado com o que viu e chamado a atenção para a necessidade de um artigo sobre o estudo. Em resposta, Lobato explicou: “‘Bom, mas isso está tudo escrito, já’. ‘Não! Você escreveu isso aqui no Brasil. Isso todo mundo precisa ler’. Eu disse: ‘Mas, como é? Não, mas está escrito em inglês’. Mas o geneticista insistiu. Disse que o artigo tinha de se publicado em um periódico estrangeiro.
Não tardou, a revista científica Evolution, da Oxford University Press, publicou, em dezembro de 1956, o artigo intitulado A genetic approach to the systematics of planorbid molluscs, escrito por Lobato. Não é de duvidar que uma carta elogiosa de Dobzhansky sobre o trabalho do brasileiro tenha chamado a atenção dos editores para o conteúdo do estudo. Afinal, o geneticista era autor de uma obra essencial para o desenvolvimento da teoria evolutiva no século 20.
No entanto, a ciência produzida pelo pesquisador nascido em Igarapé-Miri, no Pará, em 1914, falava por si. Não à toa ele se tornou um dos mais importantes especialistas do mundo em moluscos de água doce. Em uma época em que a genética ainda dava os primeiros passos no Brasil, ele havia lançado mão de conhecimentos na área para desfazer a grande confusão que envolvia espécies associadas à esquistossomose, doença causada pelo parasita Schistosoma mansoni, transmitida por caramujos infectados.
Produção também inclui importante contribuição no estudo da malária
O Fundo Wladimir Lobato Paraense reúne registros fundamentais produzidos pelo pesquisador ao longo dos seus 97 anos de vida, entre documentos textuais, iconográficos, cartográficos e tridimensionais, como medalhas, broches e placas, um material valioso sobre a produção do conhecimento científico no Brasil. A documentação disponível traz detalhes dos avanços e de entraves no processo de constituição do campo da malacologia no país, assim como informações de estudos sobre malária e leishmaniose, entre outras doenças. Minucioso nas anotações de pesquisa, ele descrevia coletas de moluscos e experimentos em letra de fácil leitura. Desenhos que amplificam diminutos caramujos também fazem parte do acervo, assim como correspondência com pesquisadores do Brasil e do exterior.
Lobato viajou pelo continente coletando moluscos. Ele percorreu do sul dos Estados Unidos à ponta meridional da América do Sul e também o Caribe. Só não fez coletas no Canadá e em Honduras (foto: Peter Ilicciev)
Em um dos documentos do acervo, de março de 1985, Lobato fala sobre a carreira ao ser agraciado com uma grande honraria da Fiocruz: “O resto do meu currículo, que foi considerado merecedor do Prêmio Oswaldo Cruz, mostra que minha atividade tem visado a tentar contribuir para a solução de problemas que afrontam a saúde da porção mais carente de nossa população, usando para isso mais equipamento mental que aparelhagem material, pois nossa natureza de país pobre até certo ponto nos compensa dando-nos problemas de enorme gravidade cuja solução muitas vezes ainda pode ser alcançada com engenho e arte”.
Com 161 artigos publicados em períodos científicos nacionais e estrangeiros, Lobato produziu incansavelmente. Entre outras contribuições, identificou espécies de caramujos vetores da esquistossomose, inaugurando uma nova linha de pesquisa sobre biologia e sistemática de moluscos transmissores da doença. Ele comprovou a existência do ciclo da vida dos parasitas causadores da malária antes do ingresso na corrente sanguínea, com estudo do Plasmodium de aves. Recebeu muitas distinções, entre as quais Man of the Year, do American Biographical Institute, dos Estados Unidos, e a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico, do governo brasileiro.
Além disso, angariou reconhecimento nacional e internacional, chamando atenção de pesquisadores estrangeiros, como Dobzhansky e Henry Milton Miller Jr. (1895-1980), então diretor associado da Fundação Rockefeller. Nome de destaque nas decisões sobre financiamentos do governo norte-americano às ciências naturais da América do Sul, ele também fez uma visita a Lobato.
“O bicho está aqui, eu tenho que estudar é aqui”
“Foi lá e perguntou, como é que eu trabalhava, eu fui mostrando, ele foi ficando num frisson, quando ele via os trabalhos. Uma hora ele me disse assim: ‘Onde é que você aprendeu isso?’ ‘Bom, aqui trabalhando’. ‘Você fez algum curso fora?’ ‘Essa mania que só quem sabe as coisas é quem vai à Europa, Estados Unidos’. Não”. Diante da insistência de estágios e visitas a centros no exterior, Lobato disse a Miller: “Olha, o bicho está aqui, eu tenho que estudar é aqui”, relata o pesquisador, na mesma entrevista concedida em 1998.
Lobato não arredou o pé do Brasil para temporadas de estudos no exterior, mas percorreu vários países do continente americano em busca de moluscos de água doce, exemplares que foram importantes para a produção de conhecimento na área. A coleção iniciada pelo pesquisador em 1948 contém cerca de 200 mil exemplares e é uma das maiores e mais representativas do país. O pesquisador reuniu genética, ecologia, evolução, zoogeografia e comportamento para desenrolar um nó taxonômico. Havia espécies iguais com nomes diversos e espécies que pareciam iguais, mas eram diferentes, como a Biomphalaria glabrata e a Biomphalaria tenagophila, que ele diferenciou e identificou como transmissoras da esquistossomose, assim como a Biomphalaria straminea.
Pioneiro no uso de conhecimentos de genética
“Ele foi expoente na nossa área de atuação. Um pioneiro, pois usou princípios mendelianos para fazer taxonomia em uma época em que o Dobzhansky estava começando com a genética. Lobato passou a fazer experimentos de cruzamento usando esses conhecimentos para identificar as espécies”, destaca a atual chefe do Laboratório de Malacologia do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Silvana Thiengo. Lobato atuou no laboratório até poucos anos antes de morrer, em fevereiro de 2012.
Lobato e Lygia: um relacionamento que nasceu no laboratório e encontrou moradia no campus da Fiocruz (foto: Peter Ilicciev)
Silvana ingressou no mestrado da Fiocruz em 1982, foi orientada por Lobato e acompanhou de perto boa parte do período dele na malacologia do Instituto Oswaldo Cruz. Naquela época, além dela, trabalhavam no laboratório Mônica Fernandez, técnica que fez formação na área e se tornou pesquisadora, e Lygia dos Reis Corrêa, companheira do pesquisador, especialista em protozoologia e braço-direito dele, fundamental nos estudos que ele realizou e que veio a substituir Lobato na chefia da unidade.
Lobato retornara para a Fiocruz em 1977, após sair da Universidade de Brasília (UnB). Voltara com uma condição: driblar o trânsito do Rio de Janeiro. A saída encontrada foi abrir as portas da Vila Residencial para acolher, via aluguel, Lobato e Lygia. Situada dentro do campus de Manguinhos, a nova moradia deixaria o pesquisador livre para sempre de congestionamentos a caminho do trabalho.
Silvana, Paulo César e as novas gerações
Da chegada do casal à Fiocruz com malas e caramujos, Paulo César dos Santos recorda-se muito bem, pois foi convocado para descarregar a mudança e ajudar na montagem do setor. Na época, trabalhava como zelador. “Não sei por qual razão, ele simpatizou com a minha pessoa e resolveu me ‘adotar’. Ele me ‘sequestrou’. Bateu o pé e disse que ia ficar comigo”, conta, aos risos, o servidor, na Fiocruz há 48 anos. Ao longo desse período ao lado de Lobato, realizou treinamentos para atuar como técnico na malacologia e viajou para vários estados do país realizando coletas de caramujos. Segue trabalhando no local, onde é responsável pela manutenção do moluscário, formado por cerca de 300 aquários.
“Foi um aprendizado trabalhar com ele”, diz Paulo. Das memórias sobre Lobato, Francisco dos Santos Lourenço, um dos responsáveis pela organização dos documentos de Lobato, conta que era comum vê-lo ao lado da esposa, andando a passos curtos no campus, ao cair da noite, com uma lanterninha na mão, percorrendo o trajeto diário entre o laboratório e a Vila Residencial.
Sobre o período em que trabalharam juntos, Silvana recorda de um pesquisador “extremamente sério, dedicado, exigente, sem muita paciência para ensinar” e que fora do ambiente de trabalho era um “piadista”. “Trabalhava de domingo a domingo. Ele ficava em pé, vendo as desovas, os experimentos, por horas e horas, já com mais de 70 anos. Era comprometido em fazer o melhor. E isso passou para nós. Nos esmeramos aqui, e o laboratório é referência nacional”, destaca Silvana.
Os registros documentais do Fundo Wladimir Lobato Paraense passam pelo período de formação universitária, ao iniciar a graduação na Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, em 1934, aos 16 anos, e se estendem por toda a carreira na academia e na gestão pública. Lobato atuou no Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), onde liderou um grupo que buscaria mapear e diferenciar as espécies transmissoras de esquistossomose; no Instituto Nacional de Endemias Rurais (INERu), em Belo Horizonte, atual Instituto René Rachou, vinculado a Fiocruz, na Universidade de Brasília (UnB), e, especialmente, no Instituto Oswaldo Cruz.
Como professor, atuou na USP, UFMG, UFRS, UnB, Universidad de Los Andes (Venezuela), Escuela de Salud Pública (México), Universidad Nacional del Nordeste (Argentina), Instituto de Medicina Tropical Pedro Kourí (Cuba) e Instituto Oswaldo Cruz. Além disso, ocupou cargos administrativas, entre os quais, diretor do Instituto Nacional de Endemias Rurais (1961-1963), diretor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília (1970-1972), vice-presidente de Pesquisas da Fundação Oswaldo Cruz (1976-1978) e chefe do Departamento de Malacologia do Instituto Oswaldo Cruz (1980-1991).
No Laboratório de Malacologia, onde Lobato tanto contribuiu para a ciência nacional, circulam jovens pesquisadores em meio a frascos com exemplares de moluscos, lâminas e tabelas. Estão debruçados sobre o microscópio, fazendo anotações, sob o olhar atento de Lobato, presente por meio de uma grande fotografia em uma das principais paredes do recinto. Que venham as novas gerações.