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29/01/2016

Fiocruz decifra genoma do parasito da oncocercose

Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)


Um artigo publicado na edição de janeiro da revista científica Memórias do Instituto Oswaldo Cruz apresenta o sequenciamento completo do genoma mitocondrial – também chamado de mitogenoma – do parasito Onchocerca volvulus coletado no Brasil. Um tipo de verme, esta filária é causadora da oncocercose, doença conhecida como ‘cegueira dos rios’, que já está na mira da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a eliminação. O trabalho é o sequenciamento do primeiro O. volvulus isolado fora da África. O estudo foi realizado por pesquisadores de duas unidades da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz): o Instituto Leônidas e Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazonas), em Manaus, e o Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), no Rio de Janeiro.

Mitogenoma do 'Onchocerca volvulus' coletado no Brasil. A figura apresenta os genes que orientam a produção de proteínas em azul; os que codificam moléculas de tRNA em vermelho; e aqueles que codificam moléculas rRNA em verde. Os pontos de variação genética são destacados em rosa (fonte: Memórias do Instituto Oswaldo Cruz)

 

Presente em 31 países africanos, a oncocercose já foi eliminada de alguns países das Américas, mas ainda ocorre em uma área isolada da floresta amazônica, no Território Indígena Yanomami, na fronteira entre o Brasil e a Venezuela. A filária analisada no estudo foi obtida a partir da biópsia da pele de um paciente infectado nesta região. De acordo com os pesquisadores, além de expandir o conhecimento científico, a decodificação do DNA mitocondrial deste patógeno pode contribuir para os esforços de combate à doença. “O sequenciamento do mitogenoma revelou a existência de polimorfismos [variedades genéticas] que abrem portas para estudos populacionais sobre o O. volvulus. Isso pode ser útil para o direcionamento mais efetivo das intervenções tanto na África quanto na América Latina”, afirmou o parasitologista Sergio Luz, coordenador do estudo e diretor da Fiocruz Amazonas.

Estudo ajuda a identificar subgrupos de parasitos

O material genético do parasito O. volvulus decifrado no estudo é chamado de DNA mitocondrial porque se localiza no interior das mitocôndrias, organelas celulares responsáveis pela produção de energia do organismo. Com a função de orientar a produção de proteínas envolvidas no funcionamento das próprias mitocôndrias, o mitogenoma contém um número muito menor de genes do que o DNA nuclear, que fica no núcleo das células. No entanto, uma vez que cada mitocôndria possui uma cópia deste material genético e uma célula pode ter dezenas ou até centenas de mitocôndrias, este DNA é abundante nos organismos e sua decodificação pode ser mais fácil por este motivo. Os cientistas também consideram o genoma mitocondrial útil para pesquisas porque ele evolui mais rapidamente do que o DNA nuclear, o que favorece a identificação de diferentes subgrupos de micro-organismos – cientificamente chamados de populações – dentro de uma mesma espécie.

Para decifrar o mitogenoma da filária O. volvulus do Brasil, os cientistas utilizaram uma combinação de tecnologias, incluindo técnicas clássicas de sequenciamento genético e métodos modernos disponíveis na Plataforma de Sequenciamento de Alto Desempenho da Fiocruz. O resultado foi uma sequência de DNA com 13.769 pares de bases, onde se encontram 36 genes – que determinam a produção de 12 proteínas e 24 moléculas chamadas de RNA –, além de 294 pares de bases não codificantes. O genoma mitocondrial completo foi depositado no banco de dados genéticos internacional GenBank, que pode ser acessado na internet.

Semelhança de 99% com linhagens africanas

A comparação do DNA mitocondrial do parasito brasileiro com o mitogenoma completo de um patógeno do oeste da África e uma sequência parcial de um verme de Camarões apontou aproximadamente 99% de semelhança, com apenas 46 pontos de possíveis variações. “Uma vez que este mitogenoma foi apenas o segundo publicado no mundo, essa análise permitiu a primeira investigação completa de polimorfismos [variedades genéticas]. Esses dados mostram o quanto o O. volvulus presente no foco do Brasil está próximo da filária que ocorre na África”, destaca Sergio, acrescentando que a semelhança entre o parasito do Brasil e o de Camarões foi maior do que a observada entre os dois patógenos da África. “No passado, acreditava-se que as filárias que ocorrem no Brasil poderiam pertencer a uma espécie distinta e causavam uma doença diferente do O. volvulus da África. Embora já se reconheça há muito tempo que estes parasitos são da mesma espécie, o resultado que observamos é notável em uma perspectiva histórica”, completa o pesquisador.

Os autores consideram que as variações genéticas observadas podem representar novos marcadores de populações do O. volvulus, contribuindo para entender a disseminação do patógeno e aprimorar as estratégias de combate à doença. Nas Américas, o Programa para Eliminação da Oncocercose atingiu a meta em quatro dos seis países onde a infecção era considerada endêmica. Porém, de acordo com Sergio, a região da fronteira entre o Brasil e a Venezuela apresenta um cenário complexo, que demanda novas abordagens. “É uma área indígena, muito grande, na qual a densidade da floresta e o terreno montanhoso tornam a logística extremamente difícil e cara. Além disso, os membros das tribos Yanomami que habitam a região são seminômades e cruzam a fronteira entre os países livremente. Esta realidade faz da Amazônia o maior desafio para a eliminação da oncocercose nas Américas e, ainda, pode se tornar o maior desafio na luta contra a doença em todo o mundo”, explica o parasitologista, ressaltando a importância do desenvolvimento de pesquisas na região. “Acredito que a orientação adequada dos recursos e das ações integradas nesta área será crucial para o sucesso dos programas de eliminação da oncocercose”, declara.

Prêmio Nobel destacou esforços contra a doença

Com 99% dos pacientes infectados vivendo em países africanos, a oncocercose faz parte do grupo de doenças classificadas pela OMS como negligenciadas. No ano passado, o agravo ganhou os holofotes quando os cientistas William Campbell, da Irlanda, e Satoshi Omura, do Japão, receberam o Prêmio Nobel de Medicina pelas descobertas que levaram ao desenvolvimento da ivermectina. O medicamento é o único tratamento eficaz contra a oncocercose e a filariose linfática, outra verminose que afeta países pobres e em desenvolvimento. Para a cura dos pacientes, são recomendados 10 a 15 anos de tratamento, com doses anuais do remédio. Embora demorada, a terapia reduz consideravelmente os danos causados pela doença e é a principal estratégia para interromper o ciclo de transmissão do agravo.

A oncocercose é conhecida como ‘cegueira dos rios’ porque é transmitida por insetos simulídeos – popularmente chamados de piuns ou borrachudos – que se criam nos cursos hídricos com correnteza. Estes insetos são infectados pela filária O. volvulus ao sugar o sangue de pessoas infectadas e transmitem o parasito para outros indivíduos por meio da picada. Os sintomas da doença são coceira, lesões na pele e formação de nódulos sob a pele. Algumas pessoas infectadas também sofrem danos oculares, com prejuízo da visão e, nos casos mais graves, cegueira.

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