23/06/2016
Luiza Gomes (Cooperação Social da Presidência da Fiocruz)
Cortejos, estandartes coloridos, sorrisos no rosto, e um mar de pessoas reunidas. Quem vê Manguinhos assim, pensa que é dia de festa. O ato Eu só quero é ser feliz – Por garantia de direitos na favela onde eu nasci transbordou para a Avenida Leopoldo Bulhões – via pública que liga Benfica a Bonsucesso – parte da efervescência artística que se abriga no labirinto das 15 comunidades que compõem o Complexo de favelas para protestar contra o aumento da violência. O evento, organizado pela Comissão Contra a Violência em Manguinhos - composta por profissionais, estudantes, moradores e militantes dos direitos humanos - aconteceu durante toda a tarde e início da noite de sábado (18/6).
Fiocruz, Conselho Comunitário de Manguinhos, Museu da Maré, e outras 17 entidades assinaram carta aberta contra a violência nas favelas (foto: Cooperação Social da Presidência da Fiocruz)
Uma tenda circense foi erguida em frente ao acesso à Comunidade Samora Machel (Mandela 2) onde se apresentaram os grupos Ballet Manguinhos, Música na Calçada, Tá no Brilho e o Coletivo de RAP Pac’Stão. Ali também se reuniram os cortejos que partiam de quatro comunidades e conjuntos habitacionais da região: Vila Turismo, Amorim, Mandela 1 e Condomínio do DSUP (Antigo Departamento de Suprimento do Exército).
Ao longo das procissões artísticas, foram cantadas palavras de ordem contra o desmonte e privatização do SUS, a diminuição do acesso à saúde, precarização do trabalho, pelo direito à vida, entre outras. Os cortejos se dividiram por temas ligados direito à Educação, à Saúde, Trabalho e Cultura e contaram com a participação do Bloco da Cigana Feiticeira, de Olaria, e o Bloco do Nada, da célula de cultura do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Os palhaços do Experimentalismo Brabo também engrossaram as fileiras contra o “bonde privatista” – setores da política institucional que atuam para diminuir o Estado de direito, denunciado pelos coletivos presentes.
Em um momento solene, em frente ao palco, o vice-presidente da Asfoc, Paulo Henrique Scrivano Garrido entregou ao menino Peterson dos Santos, filho cadeirante de 11 anos de Andréia dos Santos, moradora de Manguinhos, um laptop novo de presente de aniversário. Peterson é um dos três filhos de Andréia, o único que sofre com paralisia cerebral e fez o pedido à mãe esse mês, garantindo que “não era para besteira, que era para estudar”, como explicou aos presentes na hora da cerimônia. O gesto de solidariedade foi viabilizado pelo projeto ‘Marias – Como posso ajudar o meu filho especial?’, que iniciou a captação dos recursos. Na ocasião, Paulo Garrido anunciou o apoio da Asfoc ao projeto ao longo deste ano.
Paz com garantia de direito
O questionamento sobre as assimetrias e o quadro de violações presentes nas favelas não foi feito somente pelo sentimento satírico e alegre – no palco, o tom das falas se tornou mais severo. A idealizadora e coordenadora do projeto Marias, a psicopedagoga Norma Maria fez um apelo às autoridades policiais pedindo que entrem nas comunidades com respeito às crianças que moram nelas.
“Digo isso por causa das mães que têm seus filhos assassinados pelas mãos do Estado e ouvem as justificativas mais absurdas, como que o jovem caiu de cabeça no chão”, indignou-se. “A polícia não tem que entrar na favela para caçar bandido, tem que agir com inteligência”.
O professor Leonardo Brasil Bueno falou pela Comissão Contra a Violência em Manguinhos, destacando os impactos de operações policiais na rotina das escolas. “Somos obrigados a cancelar semanas de aulas, interromper atividades por dias por causa dos constantes tiroteios, passar com criança no meio dos fuzis... Nós não queremos a paz pra mostrar na Rede Globo, queremos garantia de direitos dos trabalhadores e moradores de Manguinhos. A gente quer lazer e toda a capacidade que Manguinhos tem de construir coisas importantes”.
Morador do Condomínio do DSUP há 11 anos e liderança do Conselho Comunitário de Manguinhos, André Lima falou sobre as dificuldades de morar em favela. “Não é fácil, o tempo todo tentam nos calar, nos diminuir. Mas é importante pensar que a paz não é o nosso local de chegada, é o caminho; temos que construir pontes de paz entre as comunidades, na família, e entre as pessoas que vivem nesse território”.
Padre Gegê, como é conhecido Geraldo José Natalino, pároco da Igreja São Daniel, fez uma contundente fala sobre o extermínio da juventude negra nas favelas. “A paz que começa com a força do Estado é uma paz mentirosa, cínica. Jovens negros e pobres são mortos sistematicamente todos os dias. Faço uma memória das mães que viram os corpos de seus filhos tombados no chão do nosso território, que Deus dê força para elas. A paz só é possível se for com justiça social”, concluiu.
Representando a Fiocruz, o coordenador da Cooperação Social, Leonídio Madureira alardeou para a necessidade de salvaguardar a vida, a democracia e de fazer a defesa intransigente da garantia de acesso ao sistema de direitos a todos e todas. “Ter paz só é possível onde a lei se faça cumprir, as pessoas sejam respeitadas, suas casas não sejam violadas constantemente; com moradia digna, em todos os aspectos, inclusive do ponto de vista ambiental, de circulação de ar e estrutura... E nós acreditamos que a condição para essa transformação é a participação das pessoas. A Fiocruz apoia e colabora para a construção desse movimento”, disse.
Representantes da Asfoc, do EJA-Manguinhos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), estudantes da Escola Municipal Luiz Carlos da Villa (que permaneceu ocupada por dois meses), e Rede CCAP também fizeram falas reivindicatórias e de apoio à ação. A Comissão Contra a Violência em Manguinhos publicou uma Carta aberta em repúdio ao assassinato do jovem Caio Daniel Faria, em maio deste ano, e à escalada da violência policial nos territórios. Leia na íntegra.
Livro Saúde e Segurança Pública disponível para download
O livro Saúde e Segurança Pública: Desafios em Territórios Vulnerabilizados, que apresenta as principais discussões levantadas pelo seminário de mesmo nome, transcorrido em outubro passado, no auditório do Museu da Vida, está disponível para download.
A publicação foi organizada pela Coordenadoria de Cooperação Social, em parceria com o Departamento de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/Ensp/Fiocruz) e pode ser baixada aqui. O lançamento oficial aconteceu durante a Feira Fiocruz Saudável deste ano.