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08/06/2016

Nova edição da Radis destaca pessoas em situação de rua

Adriano De Lavor (Revista Radis)


Elas estão presentes em quase todos os centros urbanos, apesar de ainda permanecerem invisíveis como destinatárias de políticas públicas efetivas; vistas como desocupadas, criminosas e marginais, as pessoas que vivem em situação de rua são vítimas de estigmas variados, alvo de violações de direitos e atingidas constantemente pela violência praticada por cidadãos e até por agentes públicos. Relatório produzido em 2015 pela Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas considera que a falta de moradia adequada constitui grave violação dos direitos humanos, já que interfere na garantia de outros fundamentais para a manutenção de uma vida digna, como segurança e saúde; o documento também relaciona o crescimento da população em situação de rua, em todo o mundo, ao aumento das desigualdades.
 
No Brasil, apesar da falta de uma política censitária para esta população, estima-se que haja 50 mil pessoas vivendo sem a proteção física e simbólica de uma casa, situação que demanda enfrentamento intersetorial e convoca à ação setores como saúde, assistência social, habitação e segurança pública. Para vencer o desafio, pesquisadores apontam para a heterogeneidade de pessoas e espaços, operadores do direito conclamam compromisso do poder público e ativistas reivindicam escuta qualificada para suas necessidades e melhor diálogo com outros movimentos sociais. Radis entrevistou pessoas que vivem (ou viveram) nesta situação para entender como sobrevivem e como buscam a efetivação de sua cidadania; também convocou gestores, profissionais e militantes para que apontassem caminhos para promover saúde neste cenário complexo, onde a proteção da vida humana muitas vezes se resume a um mero anteparo de papelão.
 
Pé na estrada

O batom vermelho brilha na boca retraída, contrastando com o desconforto presente no olhar. Talvez seja cansaço, talvez falta de esperança, mas está claro que Helen não quer estar ali, tão longe de casa, ainda tão distante de seus sonhos. De mãos dadas, ela e o companheiro Ivan mantêm-se juntos e quietos, olhos atentos ao redor, enquanto aguardam o fim dos discursos inflamados e comprometidos proferidos na Praça do Trabalhador, no setor central de Goiânia. O calor impacienta, mas a possibilidade de garantir um almoço gratuito e ainda discutir os problemas que enfrentam no cotidiano é bem atraente para quem vive há dois meses em situação de rua. No entanto, é preciso voltar um pouco no tempo para explicar como Helen e Ivan chegaram ali e o que faziam a mais de 3 mil quilômetros de onde nasceram naquela manhã ensolarada de 25 de fevereiro, em pleno Planalto Central.
 
Em 2015, Helen Dolzane ainda vivia às voltas com o seu nome masculino de batismo, em Manaus, quando decidiu dar as costas para o conturbado convívio familiar. Transexual, sobrevivendo da prostituição, era ela que pagava o aluguel da família, mesmo já tendo sido expulsa de casa, por não aceitarem sua identidade de gênero. Naquele momento, ela decidiu tentar vida nova com o namorado, o mototaxista Ivan Vieira dos Santos, longe dali. Embarcaram primeiro para Rio Preto da Eva, no interior do Amazonas, e depois rumo a Belém, de barco, com o objetivo de chegar a São Paulo, onde Helen realizaria o grande sonho de aplicar silicone nos seios. Na capital paraense, foram roubados e perderam tudo. Sem dinheiro e sem documentos, passaram a fazer bicos e caíram na estrada novamente. Desde então, vivem literalmente nas ruas. Em dois meses, de ônibus ou de carona, passaram pelo Maranhão, tentaram viver em Tocantins e estavam em Goiânia, no momento em que o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) comemorava seu primeiro ano de existência na cidade.
 
É neste contexto que Ivan, Helen e muitas outras pessoas estão enfrentando o intenso calor que faz na Praça do Trabalhador, sob os toldos montados ao lado do antigo prédio de uma estação ferroviária. O encontro também reúne autoridades, profissionais e representantes de instituições e entidades que cuidam desta população na cidade e no estado de Goiás, além de representantes do poder judiciário e do MNPR, vindos de vários estados brasileiros. Reunidos, eles discutem estratégias de cuidado e de emancipação das populações vulneráveis e preparam o 3º Seminário Povos de Rua — Políticas públicas para a população em situação de rua pensadas em uma perspectiva intersetorial, previsto para o dia seguinte, na Câmara Municipal de Goiânia. Ao redor, estandes institucionais oferecem cortes de cabelo, distribuem material educativo sobre saúde e emprego, enquanto profissionais anotam os dados dos interessados em receber novos documentos; em um ônibus adaptado, um grupo presta atendimento a mulheres vítimas de violência doméstica, onde se lê, no lugar da plaqueta de destino, a palavra “acolhimento”.
 
Efetivação de direitos

“Não há como negar nossa existência; a nossa luta, hoje, é pela efetivação das políticas públicas e pela não violação de direitos que as pessoas em situação de rua sofrem o tempo inteiro”, discursa, animada, Maria Lúcia Santos Pereira, coordenadora do MNPR em Salvador e integrante do Conselho Nacional para o Acompanhamento e Monitoramento da Política de Pessoas em Situação de Rua, ao receber os participantes. Em entrevista posterior concedida à Radis, ela contou que o movimento foi criado em 2005, depois do episódio que ficou conhecido como Massacre da Sé — em 19 e 22 de agosto daquele ano, 15 pessoas foram atacadas quando dormiam na Praça da Sé, região central de São Paulo; destas, sete morreram.
 
Onze anos depois, o MNPR tem representantes em quase todos os estados do país, 17 deles presentes em Goiânia, cidade marcada pela violência praticada contra as pessoas que vivem em situação de rua. Somente em 2013, 41 delas foram assassinadas na capital goiana; em todo o Brasil, foram 195 no primeiro semestre daquele ano, segundo relatório divulgado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Na cartilha Conhecer para lutar, o MNPR enumera as principais violações de direitos sofridas por quem vive em situação de rua: chacinas e extermínios; espancamentos e retirada de pertences; ataques com jatos de água, coação e agressão verbal; detenção por vadiagem, impedimento de acessar serviços e espaços públicos e expulsão das regiões centrais das cidades, além de proibição de doações, cadastro e abrigamento obrigatórios, apreensão de documentos e o não atendimento pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).

“Como garantir dignidade se os serviços básicos não são respeitados?”, questionou Eduardo de Matos Cheruli, coordenador do movimento em Goiânia, reivindicando maior envolvimento dos poderes públicos. “A rua está fazendo seu papel; chegou a hora do Estado fazer o mesmo”, cobrou das autoridades, no momento em que a prefeitura de Goiânia e o governo de Goiás aderiam à Política Nacional para a População em Situação de Rua, durante o seminário. Criada pelo decreto 7.053, de 23 de dezembro de 2009, a política tem como primeiro objetivo “assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda” e prevê que sua implementação será descentralizada e articulada, a partir da adesão de estados e municípios.
 
Em quase sete anos de vigência, no entanto, apenas Acre, Bahia, Minas Gerais e São Paulo firmaram compromisso com a lei, como informou Leda Borges, titular da Secretaria Estadual da Mulher, do Desenvolvimento Social, da Igualdade Racial, dos Direitos Humanos e do Trabalho, ao formalizar a assinatura, garantindo o compromisso de apoiar os municípios na execução de ações integradas, como a criação de um comitê intersetorial para tratar do assunto. Entre as ações previstas no decreto, estão, além da formação de comitês, a capacitação de profissionais e gestores para atuar no desenvolvimento de políticas públicas para esta população, a contagem de quantas pessoas vivem nesta situação, o desenvolvimento de ações educativas que “contribuam para a formação de cultura de respeito, ética e solidariedade” com elas e até a articulação entre o Sistema Único de Assistência Social (Suas) e o SUS de modo a qualificar a oferta de serviços.
 
Conhecer para incluir

Na prática, ainda há muito a se fazer, aponta Anderson Miranda, coordenador do MNPR em São Paulo e integrante do Conselho Nacional de Assistência Social. “Política é que nem feijão; só se cozinha na pressão”, provocou o público que o assistia no auditório da Câmara Municipal de Goiânia. Ele criticou a falta de dotação orçamentária para a legitimação de políticas públicas e alertou para o risco que corre a efetividade de qualquer ação, no caso de a população em situação de rua não ser incluída no seu planejamento e na sua execução. “Nós não queremos mais ser apenas objetos de pesquisa de universidade. Objetos são manuseados, muitas vezes quebrados e jogados no lixo”, criticou, lembrando que pesquisas são ineficazes quando, por exemplo, não levam em consideração as especificidades das pessoas em situação de rua.
 
Anderson apresentou como positiva a experiência que vem sendo desenvolvida na cidade de São Paulo — um censo anual, com a participação remunerada de moradores de rua, que fornece subsídios para o comitê intersetorial que reúne nove secretarias municipais — e deu ênfase a sete projetos do município de economia solidária, abertos à participação das pessoas em situação de rua. Ex-catador de lata e “cozinheiro explorado”, como se apresentou, o ativista demandou do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a inclusão do grupo em sua próxima contagem da população, para que haja uma política mais includente. “Quando a gente não sabe dos dados é que há exclusão”, justificou.
 
Hoje, o que existe é a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) em 2007 e publicada no ano seguinte, e uma demanda do Comitê Nacional da Saúde da População em Situação de Rua para que o próximo Censo do IBGE, previsto para 2020, pesquise estes dados, informou Marcelo Pedra, psicólogo e sanitarista do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde. Ele informou à Radis que algumas cidades já fazem uma estimativa, como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, mas reconheceu que é muito difícil conduzir uma política pública sem informações atualizadas e consistentes sobre a população. Recentemente, Goiânia também fez um levantamento piloto, em parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG). Dados do MNPR dão conta de crescimento da população, estimada em 50 mil pessoas em todo o país.
 
As cobranças feitas pelos integrantes do MNPR são endossadas pelo promotor Eduardo Prego, coordenador do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos e do Cidadão (CAODHC), em Goiânia. Para ele, o protagonismo das pessoas que vivem em situação de rua possibilita que o poder público consiga aliar previsões legais às necessidades desta população, fazendo com que se saia “da morosidade e do estado de omissão”. Para isso, é essencial também garantir recursos financeiros. “Não basta apenas garantir previsão legal, fazer previsão de direitos, é necessário dinheiro para que as políticas saiam do papel”, disse o procurador.
 
“Comprometimento é a palavra-chave”, considerou a procuradora Ivana Farina, vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), ao conversar com a Radis. Para ela, efetivar a política pública, que é fruto da mobilização do movimento social, demanda um outro movimento, desta vez de agentes e setores do poder públicos responsáveis por ações e deveres que ainda não são cumpridos. Ela apontou como ação prioritária o censo — “O Brasil ainda não conhece a população em situação de rua. Não há como atender uma demanda que não é conhecida” — argumentando que os problemas identificados pelo movimento social representam apenas uma parte de questões coletivas mais complexas, que o Estado tem a obrigação de procurar conhecer. Ivana citou como exemplo as necessidades de saúde específicas desta população, nem sempre previstas pelas normas que regem o funcionamento do SUS. Outras prioridades, segundo a procuradora, são a política de identificação civil e a garantia de alimentação adequada. Em sua opinião, o registro destas pessoas deve ser feito de forma diferenciada, já que as práticas de contagem são baseadas na existência de um domicílio.

Leia a reportagem completa no site da Radis.

Confira também a edição 165 na íntegra.

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