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25/10/2019

Fiocruz reúne jovens de periferias para debater ciência

Luiza Gomes (Cooperação Social da Fiocruz)


Seis anos após a legislação de cotas entrar em vigor e em um contexto de severas restrições orçamentárias nas pastas da Educação, Ciência e Tecnologia, setores da Fiocruz reuniram jovens acadêmicos moradores de periferias para discutir a trajetória traçada por eles nos espaços formais de produção de conhecimento, no último sábado (19/10), durante o 26º Fiocruz Pra Você. Jornadas triplas, baixa oferta de vagas no Ensino Médio da rede pública, e discriminação nos espaços universitários estão entre os desafios compartilhados. 

Cerca de 36 pessoas contribuíram com o debate (foto: Divulgação)

 

O Encontro Favela e Ciência na Fiocruz tomou forma a partir de duas frentes de trabalho em desenvolvimento: o encontro de egressos do Programa de Formação de Monitores do Museu da Vida (MV) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), organizado pelo setor de Eventos da Presidência, e da articulação em torno do Fórum Favela-Universidade, promovida pela Cooperação Social da Fiocruz e MV, em parceria com a Pró-reitoria de Extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PR5/UFRJ) e organizações de Maré e Manguinhos. 

Cerca de 36 pessoas contribuíram com o debate, que teve como ponto de partida a exposição itinerante Manguinhos: Território em Transe, fotografias do Programa Imagens do Povo (Observatório de Favelas) e a instalação O Muro, alocadas no prédio histórico da Cavalariça, onde ocorria o encontro, no campus Manguinhos. Do lado de fora, junto aos estandes, era inaugurada a exposição Manguinhos: Quadros de um Território-Manifesto, organizada com metodologia de curadoria com participação social junto a organizações comunitárias.

Evento teve como ponto de partida a instalação 'O Muro', alocada no prédio histórico da Cavalariça (foto: Divulgação)

 

Barreiras no acesso à educação

Entre pós-doutores, pós-graduandos, graduandos e candidatos ao vestibular com diferentes gêneros, idades, profissões e estados de origem, um lugar de pertencimento comum: a identidade com as periferias brasileiras. Nelas, o acesso à educação de nível superior se realiza, mas mediado pelo contexto de desigualdades e iniquidades sociais em saúde presentes nesses territórios. 

Segundo censo realizado pela organização não-governamental Redes da Maré publicado este mês e mencionado durante o evento, apenas 2,4% do total dos moradores do Complexo da Maré, na zona Norte do Rio de Janeiro, chegou ao ensino superior. 

“Em 2000, quando fizemos o censo a primeira vez, 0,1 ou 0,2 % dos moradores da Maré estavam na universidade. Mas a gente sabe que o filtro continua pela forma como está estruturada a rede de ensino: nas 16 comunidades da Maré, temos 48 escolas de ensino fundamental e apenas uma de ensino médio”, informou Antônio Carlos Vieira, do Centro de Estudos e Ações Sociais da Maré. “Embora estejamos com percentual maior de universitários, passados quase dez anos, ainda é muito pouco e muito abaixo dos bairros de classe média”. 

Leonídio Madureira, coordenador da Cooperação Social da Fiocruz, lembrou que o índice de moradores de Manguinhos na universidade – jovens e adultos – não chega a 2%, em alusão ao levantamento feito pelo Centro de Tecnologia de Informação e Comunicação do Estado do Rio de Janeiro (Proderj), entre 2008 e 2009, no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-Manguinhos).

André Lima, morador de Manguinhos e doutor em História das Ciência pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), destacou o impacto da restrição de acesso à educação na perspectiva de vida da juventude. “Em geral os moradores de favelas só pensam em entrar na faculdade depois que conseguir emprego. Eu mesmo só fui fazer vestibular adulto, com filho. E depois que entramos, como permanecer?”, provocou. “Me entristeço quando vou nas lojas de departamento na zona Norte e encontro professor, fisioterapeuta, que ao invés de estarem exercendo a profissão estão ali, que é onde existe oferta no mercado”.

Quem produz o ‘conhecimento’?

Para além da dimensão estrutural do acesso, a exclusão de segmentos sociais aos espaços de produção de conhecimento científico aparta saberes e perspectivas que fazem parte das diferentes culturas que compõem uma sociedade. De acordo com Sofia Barreto, assistente social e bolsista da Agenda Jovem Fiocruz, a universidade, em geral, falha ao não enxergar atores e produtores de conhecimento não institucionalizados. 

“Quando os jovens de favela entram na universidade, o conhecimento passa a ser produzido a partir desse lugar. Tradicionalmente, o branco nunca é o outro; o outro é sempre o negro, o favelado. Quando esse espaço começa a ser democratizado, o branco, o acadêmico clássico, pode se olhar e questionar esse lugar. E isso mexe com a estrutura”, argumentou. 

Jornalista e integrante do Coletivo negro da Fiocruz, Ariene Rodrigues reforçou o argumento, dizendo que não seriam os professores que historicamente ocupam os programas de pós-graduação que iriam adotar autores negros, mulheres, que falem de raça, classe e gênero. “E isso precisa ser feito; se não for, vamos continuar sendo formado pelas mesmas caixinhas, debatendo as mesmas coisas, sob os mesmos pontos de vista”, problematizou.

As normas, a linguagem e as estéticas próprias do espaço acadêmico também foram discutidos. “Em que medida, os códigos também são ferramentas de exclusão?”, questionou Raíza Moreira, cuja pesquisa sobre infâncias e cultura popular pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) fora escrita em formato de crônicas. “Quando exercemos papel de representatividade nesses espaços, temos que nos esforçar a continuar atuando de forma coerente com os valores que nos forjaram e isso é um desafio”, apontou. 

O papel social da ciência e a dificuldade de diálogo das instituições científicas com a população também apareceu na fala de Matheus Simões, jovem pesquisador em iniciativa da Agenda Jovem Fiocruz. “Às vezes você é um super acadêmico, sabe o que está falando, mas sua linguagem não chega a quem tem que chegar. Por mais repleto de razão, ela não se torna relevante na realidade concreta do trabalhador do chão de fábrica, ou na igreja”, criticou. “Aonde vou, tento cumprir esse papel de quem fala essas duas línguas”.

O Encontro Favela e Ciência na Fiocruz foi promovido em parceria pelo setor de Eventos, Coordenação de Cooperação Social da Fiocruz e Museu da Vida da COC/Fiocruz. A iniciativa dialoga com o planejamento institucional da Fiocruz, em especial com a Tese 3, a partir de sua 15ª diretriz: “Fortalecer e articular as políticas institucionais de divulgação e popularização da ciência, ampliando o impacto das ações de forma a estimular uma cultura científica e democrática na sociedade, num diálogo permanente com os diferentes públicos, em especial com aqueles historicamente excluídos”. O documento de referência do 8º Congresso Interno pode ser acessado aqui

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