Os mais de 500 filmes do catálogo da Fioflix nos transportam para os mais diversos lugares. Podemos assistir obras que nos transportam para cidades isoladas, manguezais, aldeias e até mesmo Salas Lilás - um espaço em ambiente hospitalar, voltado ao acolhimento e atendimento diferenciado para pessoas em situação de violência, principalmente mulheres. O filme de hoje, entretanto, não se passa em lugar algum. Ou melhor, ele se passa em um “não lugar”. Territórios Marginais é ambientado nas calçadas, ruas, vielas e becos. O território que, para muitos, é apenas passagem. O espaço entre o lugar de onde se vem e para onde se vai. Ele nem mesmo existe. Enquanto se passa por ali é como se não estivéssemos em lugar algum, apenas “a caminho”. Por mais que muitas pessoas tenham esse espaço como apenas isso - passagem – muitas outras permanecem ali, sem ter um destino concreto à vista. É como se, assim como as ruas, elas nem mesmo existissem. As pessoas em situação de rua, por mais que ocupem um espaço físico no campo de visão de qualquer pedestre, não são vistas. É como se elas fizessem parte da coletânea de prédios e postes, apenas componentes caracterizantes de um cenário. Esta obra, além colocá-las em protagonismo, nos leva a entender a complexidade de olhar e cuidar dessa população em situação de rua.
O filme - diferente de outros documentários expositivos – utiliza-se de um dispositivo interessante e envolvente. Ao invés de falarem diretamente com a câmera - ou seja, com o espectador – as personagens falam entre si. É uma narrativa que nos faz enxergá-las com mais naturalidade e entendê-las mais aprofundadamente. Ao invés de nos lançar informações e estatísticas, o filme é composto de diversas vídeo-cartas trocadas entre moradores de rua de Campinas e Niterói. Na primeira metade da narrativa, acompanhamos os moradores de Campinas. Eles nos contam suas histórias, como começaram a morar nas ruas e como são as suas vidas. Para além de um sofrimento apelativo, vemos pessoas. Eles têm individualidades, gostos, rotinas, relações, sonhos e preocupações. Vemos como nenhum deles parece ser visto por quem passa. É como se as suas vozes fossem apenas mais um ruído da cidade grande, assim como as buzinas dos carros e as sirenes de ambulância. As pessoas em situação de rua não são vistas ou ouvidas por quem ocupa o seu mesmo ambiente, mas sim quando estão sendo capturadas pelas lentes de uma câmera. Conforme vemos as vídeo-cartas, também se exibem as reações dos moradores de Niterói que, por sua vez, as assistem através de um tablet. A discrepância que nos choca é a invisibilidade daqueles corpos onde eles estão e a atenção que recebem de pessoas que entendem as suas vivências. Quem escuta os moradores de rua, em geral, são os moradores de rua. É mais fácil as pessoas em situação de rua de cidades diferentes se escutarem do que os pedestres as enxergarem como seres humanos.
A segunda metade da narrativa se passa em Niterói. Após assistirem às vídeo-cartas, os niteroienses fazem as suas próprias. Eles também nos contam suas histórias e, assim como em Campinas, vemos pessoas. A relevância dessa narrativa ao nos fazer enxergar estas pessoas é imensa, visto que ser visto e ouvido é uma questão de saúde pública. Algo de similar entre estes dois blocos narrativos é a presença de redutores de danos. Eles são profissionais que trabalham para os consultórios de rua. Tanto em Campinas quanto em Niterói, assistimos depoimentos destes profissionais. “A gente não vai salvar, a gente vai aprender”. Eles falam, de forma bastante genuína e vulnerável, sobre as suas experiências trabalhando com pessoas em situação de rua. Ao invés de assumir uma postura de controle – na qual se impõe um tratamento invasivo – fala-se muito sobre o convite. Phillipe - redutor de danos de Niterói - fala sobre como, em certa ocasião, tentou auxiliar uma moradora. Ela estava muito sonolenta e visivelmente sob efeito de entorpecentes. Como ela não conseguia manter um diálogo muito profundo, ele apenas sugeriu que ela saísse debaixo do sol e fosse para um local com sombra. Ela aceitou. No dia seguinte, ele conversou com ela sobre isso e outras questões que surgiram. Ele conta como era importante naquele momento que ela não dormisse daquele jeito debaixo do sol, pois acordaria muito queimada e poderia desidratar. Ele a tratou como uma pessoa e alcançou um resultado mais digno e duradouro do que se ele simplesmente a tratasse como um empecilho que precisaria resolver. Infelizmente, esse tipo de abordagem não é reconhecida e, como exibe-se no final do filme, acaba por ser invisibilizada. “As políticas de saúde pautadas na redução de danos valorizam as pessoas e colocam em ação estratégias de cuidado, que possibilitam transformações reais nas situações de vulnerabilidade”.
No que diz respeito aos elementos técnicos, a ambientação sonora é excelente. Sentimos como se estivéssemos ao lado dos entrevistados, imersos naquele ambiente. É um trabalho admirável, visto que não seria possível conquistá-lo apenas ligando um microfone e deixando que ele capture o que for. O som é bastante sensível, dando espaço para cada ruído contar um pouco de sua história. Desde barulhos de carros até as ondas da baía de guanabara, cada pequeno elemento é nítido e soa natural aos ouvidos. Foi um belo trabalho de mixagem e captura. A fotografia, por sua vez, é muito engenhosa e intimista. Ela traz um ar de “filme de cinema”, o que nos faz enxergar aqueles personagens ainda mais como protagonistas e nos imerge ainda mais em suas histórias de vida. Percebemos como a equipe por trás dessa obra - além de muito competente - teve o cuidado de dar atenção aos detalhes e aos elementos comumente invisibilizados - algo que é muito emblemático, dado o contexto do filme.
Não apenas as palavras faladas pertencem às pessoas em situação de rua, mas também a música que toca nos minutos finais. Nos créditos, explicita-se como ela foi gravada por pessoas em situação de rua através de uma atividade realizada pelo redutor de danos de Campinas: Thiago Carvalho. A música, assim como o filme, é muito bem trabalhada. Ela começa a tocar conforme as últimas imagens de Niterói - as ondas e areias de uma praia - são exibidas em cena. Junto dela, escutam-se as ondas do mar. Ambas se misturam como uma sinfonia. As imagens passam a dar lugar aos créditos e, por fim, a música vai diminuindo. As vozes vão se aquietando e as ondas do mar vão permanecendo. Até que restam apenas elas: as ondas. As pessoas – estejam elas em situação de rua ou não - vão e vem, mas o ambiente permanece. Independente de quantas gerações de pessoas em situação de ruas passarem pelas cidades grandes, as ondas vão continuar quebrando contra as areias da Baía de Guanabara. O ambiente vai permanecer e, com ele, a invisibilização de seres humanos que têm o direito à saúde pública. Pessoas precisam ser vistas e, para isso, precisamos mudar a forma como as vemos. Para assistir Territórios Marginais e outros 500 filmes sobre saúde, ciência e tecnologia, acesse a plataforma Fioflix: Vídeo Saúde.