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12/12/2016

Manuscrito traz pistas de práticas médicas adotadas por jesuítas

Portal COC


Convidada do Encontro às Quintas, do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC /Fiocruz), a historiadora Heloisa Meireles Gesteira, doutora em história e pesquisadora titular no Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), ministrou a palestra Reflexões sobre um Caderno de Medicina Setecentista: Circulação de saberes e práticas na América portuguesa. Em sua explanação, a pesquisadora, que possui interesse em temas como ciência e colonização na Época Moderna, história social da ciência, história do Brasil colônia e circulação dos saberes no Império português, nos séculos 16 a 18, ressaltou a importância do debate em torno do assunto. “É uma oportunidade voltar [ao tema], a gente sempre volta com um olhar diferente apontando caminhos e questões que podem nos ajudar sobre as práticas médicas na América Portuguesa, com uma perspectiva diferente”, disse.

Com o título manuscrito Formulário médico de 1703 que foi encontrado em uma arca da igreja de São Francisco de Curitiba e atribuído aos jesuítas, o documento (disponível na Seção de Obras Raras da Biblioteca de Manguinhos/Fiocruz) “me fascinava e, ao mesmo tempo, me deixava intrigada, sobretudo, quanto à autenticidade. Não tem autoria. Foi produzido por uma ou mais pessoas?”. Segundo ela, é bastante interessante pensar e repensar as práticas médicas na América Portuguesa.

A historiadora apresentou alguns indícios tirados do manuscrito que, em sua análise, podem conduzir às práticas médicas adotadas pelos jesuítas. Heloísa Gesteira disse, no entanto, que não se deve descartar a possibilidade de o caderno ter pertencido a qualquer outra ordem religiosa atuante na América Portuguesa como os beneditinos, que tinham boticas e comercializavam remédios, ou qualquer médico ou cirurgião que circulou pela região. “Ele é um documento manuscrito, todo em português (nas missões circulavam manuscritos de matéria médica majoritariamente em espanhol) ”, destacou.

A pesquisadora informou, ainda, que, de acordo com um estudo paleográfico, “parece que foi redigido por uma só pessoa (e isso é importante!), mas não aparece autógrafo nem qualquer outra pista que indique sua autoria”, ressaltou. Heloísa Gesteira adiantou que, como parte de projeto editorial, há um estudo em desenvolvimento [no Mast] sobre a materialidade do documento.

De acordo com a pesquisadora, esse documento não faz reflexão teórica sobre medicina, mas apresenta muitos elementos que – mesmo incorporando as ervas dos indígenas -  não deixam de usar referência da medicina europeia. “Então, me parece que é pensar a construção do conhecimento de uma maneira diferente, guardando algumas especificidades, mas, talvez, não fazendo uma oposição muito grande entre as práticas médicas coloniais populares e a medicina europeia”, ponderou.

Circulação da medicina colonial

Heloísa Gesteira citou um caso considerado interessante em torno da árvore da copaíba, utilizada pelos indígenas antes do século 16. Segundo a pesquisadora, a espécie é amplamente aplicada no tratamento de ferida e circulou pelo Japão, Europa e também tinha alto valor comercial. Embora não sendo feito em grande escala, “trata-se de um produto comercializado” em rotas mercantis. Para a historiadora, a farmacopeia ou a medicina experimentou enriquecimento a partir dos descobrimentos. Ela defendeu que os jesuítas tiveram importância nessa circulação planetária. “Essa medicina colonial não pode ser tratada como uma medicina das práticas populares, embora também a incorpore e o caderno é um artefato fundamental para pesarmos nessa questão, como outros cadernos, como são constituídos e como guardam um pouco da própria vida social.”

Heloísa Gesteira disse que, até 1759, missionários da Companhia de Jesus acumularam conhecimento sobre as plantas e animais do Novo Mundo. As pistas foram encontradas no Formulário Médico, disponível na Seção de Obras Raras da Biblioteca de Manguinhos/Fiocruz. Autora de artigos e livros, além de desenvolver projetos, Heloísa Gesteira assina títulos como Formas do Império: Ciência, tecnologia e política em Portugal e no Brasil, Séculos XVI ao XIX (São Paulo - Paz e Terra, 2014) e Ensaios de História das Ciências no Brasil: Das Luzes à nação independente (Rio de Janeiro: Eduerj, 2012).

Fazenda de Campos dos Goytacazes e Triaga Brasílica

Há uma documentação no Ministério da Fazenda no Rio de Janeiro dos livros dessa fazenda, onde há descrição de uma botica; e também de uma livraria, em que aparecem autores como Curvo Semedo [poeta português Belchior Manuel Curvo Semedo Torres de Sequeira (1766 - 1838)].

“A botica jesuítica não é só espaço de compra e venda, ela é um espaço para fazer alguns remédios. Isso não era algo restrito às boticas das cidades, como de Salvador, Belém e do Rio de Janeiro”. Segundo a historiadora, a receita da venda dos remédios era bastante grande. “No inventário da fazenda de Campos dos Goytacazes havia dois cadernos de medicina, que, provavelmente, são receituários”, disse.

Ao apresentar sua palestra no Encontro às Quintas, Heloísa Gesteira declarou que há o registro da Triaga Brasílica (receitas à base de plantas, animais e outras substâncias, como minerais, sais e óleos) no texto. “Isso para mim é um dos indícios mais fortes de que esse documento pode ter sido efetivamente manipulado, feito por um jesuíta”, afirmou a historiadora do Mast. Segundo ela, esses registros são muito idênticos aos que aparecem no manuscrito que está em Roma. “Reúne receitas de todos os colégios jesuíticos, entre os quais a Triaga Brasílica produzida no colégio da Bahia. A Triaga era uma receita mantida sob sigilo. Acho muito curioso que a apresentação dela seja idêntica”, frisou. 

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