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23/11/2021

Membro de comitê da OMS e pesquisador da Fiocruz, Carlos Morel fala sobre possíveis diretrizes do Sago para investigar pandemias

Cristina Azevedo (Agência Fiocruz de Notícias)


“Um erro, uma correção”, assim o pesquisador pernambucano Carlos Morel, ex-presidente da Fiocruz e atual coordenador do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS/Fiocruz), diz que o mundo caminha. Após participar, nesta terça-feira (23/11), da primeira reunião do Scientific Advisory Group for the Origins of Novel Pathogens (Sago), um comitê consultivo científico para origens de novos patógenos formado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), Morel defende o sequenciamento em massa dos vírus em circulação - uma ideia que espera que ganhe força com o novo grupo. “É importante sequenciar o que está por aí”, afirma. 

Embora tenha surgido como uma resposta à pressão pela busca da origem do Sars-CoV-2, que deflagrou a pandemia de Covid-19, o grupo deverá traçar diretrizes para investigar “pandemias passadas, presentes e futuras”. Morel vê ainda na formação da comissão uma nova estratégia da OMS de incluir maior representatividade, já que cada um de seus 27 integrantes vem de um país diferente. Uma tática que poderá ajudar a conquistar a confiança de nações e abrir portas. “A OMS só vai a um país se for convidada, ela não tem poder de polícia”, lembra o pesquisador. 

AFN: O comitê formado pela OMS reúne pessoas de vários campos diferentes. Como ele vai funcionar? Haverá envio de missões a outros países? 

Carlos Morel: Tivemos a nossa primeira reunião hoje. As reuniões por enquanto serão virtuais, e o comitê poderá ser solicitado a fazer viagens não só a Genebra, mas viagens de inspeção a alguns países. Um alvo inicial, que todo mundo comenta, é a China [onde o Sars-CoV-2 foi identificado pela primeira vez], mas muita negociação vai ser necessária antes de ir lá. Primeiro porque a OMS só vai a um país se for convidada, ela não tem poder de polícia. E eu acho que isso só vai acontecer a médio prazo porque não só a China, mas qualquer país, precisará ter confiança no comitê para convidá-lo. Vai ter muita pressão para começar por aí, mas acho que primeiro vamos rever evidências, informações, analisar o que fez o comitê anterior que esteve na China.  

AFN: No que esse grupo se difere dos outros? 

Carlos Morel: Esse comitê foi formado porque havia muita pressão sobre a OMS. Então, a OMS optou pela solução clássica, que é montar um comitê para instruir. O que achei interessante é que, ao contrário de outros, ele não foi norteado apenas pela capacidade técnico-científica dos membros. Ele foi norteado pelo fato de cada pessoa ser de um país. Tentaram fazer algo espalhado. Tem 27 pessoas, 27 países. Há desde países avançados, como Estados Unidos, Inglaterra, Austrália; países  middle income [de renda média], como o Brasil; e países menos desenvolvidos, Líbano, Camboja. Uma salada não só de países, mas de experiências. Há especialistas em doenças infecciosas, virologia, ecologia, epidemiologia molecular, bioinformática, ética, ciências sociais... Uma capacidade bastante ampla. Mas todos lidaram com biossegurança. 

AFN: Esse fato de virem de diferentes países confere uma certa independência, principalmente quando a gente vê uma questão como essa, da China, que envolve um caráter político? 

Carlos Morel: Exato. A montagem desse comitê, para mim, já é prova de uma estratégia nova da OMS. Ela notou que não basta ter aqueles sábios científicos dizendo A, B ou C. Isso é parte do problema. Tem que haver representatividade. Para mim, eles fizeram quase que uma mini-assembleia da saúde. Não vai ser fácil, tanto que enfatizaram que ninguém era obrigado a aceitar. 

AFN: Acredita que a pressão será grande? 

Carlos Morel: Já está sendo. Um comitê desse, ainda mais com tanta visibilidade e tanta pressão prévia... O que a gente vê de cartas acusando a China ou defendendo a China, não só na imprensa leiga, mas também nas revistas científicas. Estão sempre escrevendo a “hipótese A” está certa, a “hipótese B” é a verdadeira. Como participei de muitas assembleias de saúde, muitas vezes representando o Brasil, vejo que isso sempre ocorreu. Quer ver um problema clássico? A gente sabe que o vírus da varíola foi eliminado da face da Terra, mas ele ainda existe num depósito nos Estados Unidos e num depósito da Rússia. Várias vezes, na Assembleia Mundial da Saúde, veio pressão para destruir os dois exemplares. Aí vem um estudo americano dizendo para não fazer isso agora. A pressão é imensa para votar a favor e votar contra. O Brasil sempre votou a favor da destruição do vírus, mas os EUA sempre ganharam com o argumento de que ainda há o que estudar. Ter que estudar? Isso era antigamente. Hoje já se tem a sequência do vírus, para que precisamos manter o bichinho lá?  

A OMS disse que quem está no comitê não está representando um país nem uma instituição. Que o convite foi baseado na capacidade pessoal. Isso diminui um pouco a pressão sobre os membros. Veja só, [o presidente americano Joe] Biden mandou fazer uma investigação [do Sars-CoV-2] pela CIA. Se ele chamar o membro americano do comitê, este pode dizer assim: "Presidente, o senhor me desculpe, mas não foi o senhor quem me nomeou". 

AFN: Como descobrir a origem do vírus vai influenciar o combate a novos patógenos? 

Carlos Morel: Uma das áreas interessantes do mandato do comitê é que ele não vai se fixar só na Covid-19 e no Sars-CoV-2. Ele vai tentar traçar diretrizes para se investigar a atual, as passadas e as futuras pandemias, que estão sempre aí na porta. Há uma série de critérios, que eles chamam de leis naturais. Por exemplo, surgiu um vírus novo? O ideal é que se compare sua sequência com as sequências que estão por aí.  

Por isso, acho que uma iniciativa importante foi o Projeto Viroma Global, que defendia o sequenciamento em massa. A gente publicou esse projeto na Science, em 2018, com a ideia de conseguir fundos. Ele era baseado na experiência do Projeto Predict, que por nove anos fez isso, vendo as regiões mais propensas a ter um vírus escapando. Mas quando viram a verba pedida, veio um artigo dizendo que era muito caro e que não trazia a melhor abordagem. Que a melhor abordagem não era prever, mas investigar quando acontecesse. Quando acontece, você já está em desvantagem! Foi um artigo de peso e matou muito daquele impulso que a gente tinha para começar a sequenciar. O prejuízo da Covid-19 foi de trilhões de dólares. Muito maior do que os recursos necessários para o Viroma Global. Enfim, é assim que o mundo caminha: um erro, uma correção. 

Tenho a impressão de que este comitê também vai tentar voltar a essas definições. É importante sequenciar o que está por aí. Acho que precisamos fazer um trabalho maciço de sequenciamento. E não só de determinadas regiões. Por exemplo, veja São Paulo. O vírus sabiá saiu de São Paulo, não veio da Floresta Amazônica. Já houve vários episódios desse arenavírus, que é altamente mortal.  

Para se descobrir a origem do vírus, tem que se saber de onde ele saiu. Ele não é criado de uma hora para a outra. Ele é a modificação de algo já existente. Pode ser por passagem por um hospedeiro intermediário. Por exemplo, a gripe suína, em geral, acontece porque há pessoas cuidando de porcos. E aí o vírus da gripe tem uma particularidade: o seu genoma é partidozinho, são oito pedacinhos. E esses pedaços podem se recombinar. É muito importante ter um conhecimento detalhado dos vírus. 

AFN: A pandemia trouxe muitos desafios, mas foi um momento em que a Fiocruz cresceu bastante... 

Carlos Morel: A Fiocruz sempre cresce nas epidemias. A Fundação foi criada por causa da epidemia de febre amarela. Está no DNA da Fiocruz. E o que dá pena é que ao lado da Fiocruz crescendo, temos as universidades à míngua. A Fiocruz teve aquela bela iniciativa, acho que foi capitaneada pelo [vice-presidente de Gestão e Desenvolvimento Institucional] Mário Moreira, de receber recursos. Foi criado o website onde a Fiocruz pôde receber doações. A Fundação estava se preparando para receber R$ 100 milhões, e recebeu mais de R$ 500 milhões. Nisso, a Fiocruz foi recompensada e reconhecida pela sua credibilidade e performance. O fato de a Fundação ter construído o Centro Hospitalar Covid-19 em sete semanas e trazido duas grandes estações de testagem da China, uma para o Rio e outra para o Ceará, mostrou que não ficamos só no "vamos fazer", mas que "estamos fazendo". E também a questão da produção da vacina, da AstraZeneca.  

Em termos de reputação, com a pandemia, a Fiocruz virou muito mais uma instituição nacional do que do Rio de Janeiro. Ficou clara a sua abrangência em todo o Brasil. Saiu uma variante nova em Manaus, está lá a Fiocruz Amazônia. Com a zika, o Aggeu Magalhães, em Pernambuco, com a Celina Turchi, deu um show de bola. Com isso, a Fiocruz conseguiu sobreviver e crescer. 

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