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07/03/2023

Na história dos saberes médico-científicos, teorias corroboraram violência contra a mulher

Eliza Toledo*


Casos de violência sexual no Brasil não são um problema exclusivo da atualidade. Refletem uma cultura de violência e vitimam, principalmente, pessoas do sexo feminino, afetando a saúde física e mental de milhares de mulheres. 

Na história dos saberes médico-científicos, há teorias que corroboraram essa forma de violência. Uma delas, corrente durante a Renascença, dizia que, para que houvesse a fecundação, as mulheres precisariam ter orgasmo. A teoria vigorou em determinados contextos até o início século 19 e foi um argumento para que mulheres vítimas de estupro fossem questionadas, pois, uma vez grávidas, elas teriam tido prazer durante a violência sexual.  

O trecho de um texto escrito em 1785 por um médico deixa evidentes o desconhecimento sobre a sexualidade feminina, a exclusão de mulheres nas ciências naquele contexto e a manutenção de dispositivos de violência sexual: “Seja o que for que uma mulher possa alegar ter sentido ou qualquer resistência que ela possa ter colocado, a concepção em si traiu o desejo ou pelo menos uma medida suficiente de aquiescência para ela desfrutar do ato venéreo”. 

Esse entendimento, felizmente, não encontra eco nos dias de hoje, embora, aqui e ali, surjam situações absurdas como a notícia recente sobre o caso de um jogador de futebol acusado de estupro, que disse que a mulher, por estar “lubrificada”, teria consentido com a “relação” sexual.

Se voltarmos ao Brasil de 70, 80 anos atrás, encontraremos outros casos de violência sexual também invisibilizados, como o de duas pacientes do Hospital Psiquiátrico do Juquery, localizado em Franco da Rocha, no Estado de São Paulo. Sobre uma delas, em 1951, os médicos escreveram: [...] lhe notamos cicatrizes no pescoço (lado direito) e no braço direito e peitoral também direito. Atribui a punhaladas que lhe deu o cunhado (irmão do marido) em virtude de ter-se recusado a ceder aos seus propósitos sexuais”. Outra paciente, internada dos 25 anos de idade, contou aos médicos, em 1946, que “Ainda criança [aos seis anos de idade], antes mesmo de entrar no grupo, foi deflorada e desde então começou a ser nervosa”.

As narrativas de violência não eram comuns nos processos de crimes sexuais na primeira metade do século 20. Ao contrário: o que se enfatizava era o consentimento para a relação, a “virgindade” e a “honestidade” das mulheres e “a violência raramente aparecia como um dado significativo” ou como um elemento integrante de tais narrativas. 

Dispositivos naturalizavam a violência e legitimavam submissão feminina 

Entre fins do século 19 e começo do século 20, o caráter sexual passivo atribuído às mulheres e sua “natural” relutância ao ato sexual – que, atrelado ao pudor, à castidade e à menor demanda sexual atribuída ao organismo feminino, representaria um “ardil” feminino, e não a negação do ato em si – foram associados ao masoquismo. Essa patologia sexual, segundo o psiquiatra alemão Krafft-Ebing, em 1886, definia-se pelo prazer em ser subjugada e mesmo violentada no ato sexual. Ela acometeria, majoritariamente, mulheres, como tendência autenticamente feminina. 

Tais dispositivos de naturalização da violência e legitimação da submissão feminina são legados históricos cruéis e muito perigosos ainda presentes em nossa cultura, que fazem das meninas e mulheres “cúmplices” da violência sofrida. 

Naquele mesmo contexto, manuais de divulgação científica que abordavam a regulação da sexualidade dentro do casamento explicitavam a preocupação com o comportamento agressivo dos homens dentro da relação sexual. Um deles, de Sylvanus Stall, intitulado Tudo que o homem casado deve saber (1910), aconselhava os maridos a não exigirem prazer na defloração e nem se admirarem se não houvesse sangue nesse ato, pois não haveria maior prova de virgindade que o pudor feminino. Respeitando esse pudor, os homens recém-casados deveriam ser compreensivos diante da natural relutância da noiva, pois, segundo Stall, o “botão da flor do amor físico não pode ser aberto rudemente”.

Esses trechos são representativos da fixação masculina pela virgindade feminina – que naquele contexto preenchia inúmeros tratados médicos com inquietações em relação ao hímen e à “virgindade moral” das mulheres – e faz claras menções ao estupro marital. Este último, aliás, permanece entre manifestações correntes de violência contra as mulheres. 

“Cultura do estupro”

Esses registros do passado também falam sobre um Brasil atual. Podemos abordá-los sob a conceitualização da “cultura do estupro”, termo que faz referência a comportamentos sutis e explícitos que silenciam ou relativizam a violência sexual. Essa forma de violência atenta contra a dignidade, a saúde e a vida de milhares de pessoas cujos corpos são marcados por processos históricos de subjugação e discriminação. No Brasil, os dados contra mulheres e crianças são estarrecedores. Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constatou que uma em cada sete adolescentes no país sofreu alguma violência sexual, sendo que em quase 6% dessa estatística houve uma relação sexual forçada. 

Seguindo o “fio” histórico da violência sexual no país, encontramos o estupro contra mulheres negras nas nossas bases coloniais. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, que reúne dados relativos ao ano anterior, entre as vítimas de estupro, mulheres negras representavam 52,2% dos casos, revelando, assim, uma conexão forte entre cultura do estupro e colonização no país. Outro dado chocante do relatório: entre pessoas LGBTQIA+, o número de estupros aumentou 88%. 

Seguramente, os números aberrantes de casos de agressão sexual no Brasil são escondidos por outras formas de violência e vulnerabilidade que impedem ou dificultam suas denúncias e registros oficiais, como àquelas atreladas às condições materiais das vítimas, aspectos étnico-raciais e o medo de retaliação. Muitas vezes pela incompreensão da violência pela vítima, em uma sociedade que naturaliza essa violência de diversas formas. O termo “novinha”, por exemplo, que hipersexualiza meninas e que está presente em tantas músicas brasileiras, é um dos termos mais buscados sites de pornografia no Brasil. No país, o comportamento pedófilo é algo sistêmico e a cultura da pedofilia sexualiza crianças e as deixa vulneráveis ao abuso e exploração sexual. 

Em três notícias sobre a temática publicadas no site Agência Patrícia Galvão, as manchetes estarrecem: “Brasil tem 822 mil estupros por ano ou dois por minuto, estima Ipea”; “Jovens de 13 anos são as principais vítimas de estupro no Brasil”; “Brasileiras sofrem mais violência física e sexual do parceiro ao longo da vida do que a média mundial”.

Exemplos históricos e atuais demonstram como é urgente abordar a violência contra mulheres e sua interface com a saúde. A perspectiva sobre esta forma de violência precisa também ser ampliada nas pesquisas das Ciências Humanas e adentrar processos educacionais. Só assim agressões, infelizmente rotineiras, poderão ser enfrentadas de forma ampla, por uma sociedade consciente que considere a sua eliminação um pressuposto para a qualidade de vida. 

Para denúncias de violência contra mulheres, Disque 180.

Crimes cibernéticos como pedofilia, pornografia infantil e outras formas de violência contra grupos vulneráveis e violações de direitos humanos podem ser denunciados pelo Disque 100.

*Eliza Toledo é pós-doutoranda Inova-Fiocruz na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

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