30/09/2021
Karina Costa (Cidacs/Fiocruz Bahia)
Mais de 5,2 milhões de crianças morreram antes que pudessem completar cinco anos no Brasil, entre 2006 e 2015. Esse número poderia ser ainda maior caso não houvesse programas de transferência de renda, como Bolsa Família, que ajudou a reduzir em 16% a mortalidade nessa faixa etária. Essa é a conclusão do estudo realizado usando métodos estatísticos e Big Data, no Centro de Integração de Dados e Conhecimento para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia). O resultado foi publicado (28/9) na revista PLOS Medicine.
Os pesquisadores compararam os municípios de alta e baixa renda e entre aqueles onde há bons índices de administração de políticas sociais, assim como crianças nascidas prematuras e de diferentes grupos étnico-raciais. Foi feita a observação de mais de 6 milhões de crianças em todo o Brasil e concluiu que quanto mais pobre e melhor a administração do programa no município, maior o seu efeito em reduzir mortalidade de crianças entre 1 e 4 anos. De acordo com o estudo, esses pequenos são em maioria crianças que nasceram prematuras, filhas de mulheres negras e que nasceram em lugares em que a faixa de renda foi considerada muito baixa. Assim, local de nascimento, raça e prematuridade já determinam o curto tempo de vida dessas crianças.
Aos mais velhos, está na memória que a mortalidade infantil já estampou muitas matérias na década de 1990. Por causas evitáveis, muitas famílias mais pobres perderam suas crianças; mas o Brasil reagiu. De lá para cá, até 2018, a taxa de mortalidade de menores de cinco anos diminuiu 67% por cento, de 52 para 14 mortes por mil nascidos vivos. E assim, cumpriu a meta 4 dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da Organizações das Nações Unidas (ODS/ONU). Ainda assim, entre 2006 e 2015, mais de 5,2 milhões de crianças não completaram essa fase indo a óbito antes.
As pesquisadoras associadas ao Cidacs/Fiocruz Bahia, Dandara Ramos e Nívea Bispo, lideram o estudo. Dandara explica como obteve os resultados: criou uma pesquisa em que comparou dois grupos, os que recebiam o benefícios, e aqueles que estavam em condições semelhantes de pobreza, número de filhos, mas seja por falta de um documento, por preencher o documento de forma inadequada ou porque possuem uma renda de até 20 ou 30 reais a mais não foram contempladas. Comparando os dois, ela pôde avaliar o impacto da transferência de renda.
“Esse artigo é parte de um grande projeto do Cidacs/Fiocruz Bahia dedicado a avaliar o impacto de políticas sociais na saúde materno-infantil. Aqui, nosso foco foi dedicado ao impacto do PBF na sobrevivência de crianças entre 1 e 4 anos de idade. Para conseguir analisar o impacto do programa foi preciso aplicar o que chamamos de métodos quase-experimentais, com isso conseguimos balancear as diferenças entre os grupos ao ponto de garantir que qualquer diferença na mortalidade das crianças beneficiárias e não beneficiárias fosse resultado do PBF, e não de outras diferenças ou vieses entre esses grupos”.
Um recorte importante do estudo foi analisar se o efeito do programa era o mesmo em subgrupos específicos. “O que encontramos foi um efeito maior do programa entre crianças nascidas prematuras, logo mais vulneráveis e sob maior risco de mortalidade, o que indica que receber a renda condicionada e a maior proximidade com os serviços de saúde ocasionada pelo PBF é ainda mais intensa para crianças prematuras que recebem do que aquelas que não recebem o benefício”, destacou Ramos. O mesmo resultado foi encontrado para crianças pretas, dentre as quais o impacto do PBF foi mais intenso do que para a população geral e do que para crianças pretas não beneficiárias. “Um achado muito importante, considerando os conhecidos impactos negativos do racismo na saúde da população negra no Brasil”, lembra a pesquisadora.
Por anos, a mortalidade infantil foi um problema muito evidente no país, evidenciando desafios para o desenvolvimento e enfrentamentos das iniquidades em saúde – conceito utilizado para definir mortes e doenças evitáveis. Com essa redução, o Brasil segue desde o final dos anos 1990 em um percurso de redução da mortalidade que é, conforme atestam os dados, impulsionado com programas de transferência de renda, como o Bolsa Família.
Inovação por trás do estudo: o Cadastro Único e Big Data
O Cadastro Único (CadÚnico) é populacional, serve para a obtenção de benefícios sociais no Brasil e existe desde 2006. Lá estão informações de mais de 117 milhões de brasileiros. Esses dados foram coletados quando um(a) cidadã (o) busca um benefício social, seja ele o Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, e outros 23 programas sociais integravam o cadastro até 2019.
No Cidacs/Fiocruz Bahia, esse cadastro é matéria prima para os estudos da Coorte de 100 Milhões de Brasileir@s. Uma Coorte é um conjunto de informações para estudos ao longo do tempo, que em Saúde Coletiva, denomina-se estudo longitudinal. Para que a pesquisadora Dandara Ramos pudesse ter acesso a esses dados, o Cidacs conseguiu a concessão do antigo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e os cientistas elaboraram os conjuntos de dados, denominados tecnicamente de datasets, de acordo com as variáveis (informações) que a pesquisa demanda para responder as perguntas.
Robespierre Pita, criador do primeiro algoritmo de integração do Cidacs/Fiocruz Bahia, explica o desafio para compor a linha do tempo que serve de eixo para as análises da Coorte não foi pequeno, trata-se do resultado de inúmeras inovações, pois não existe outro estudo com amostra tão robusta. Para cada indivíduo no CadÚnico, existem 200 colunas de informações. Ou seja, entra-se na ordem dos bilhões os registros a serem considerados e é pra isso que se convoca estratégias de big data. “Essas bases são administrativas, ou sejam, não foram feitas para a pesquisa e por isso precisam passar por uma fase de preparação”, explica o pesquisador.
Os profissionais do Núcleo de Produção de Dados (NPD) têm que lidar com o fato de que, a cada nova versão e atualização do Cadastro Único, surgem novas variáveis, novas formas de preenchimento de uma mesma informação. Como criar uma linha contínua quando quantidade de colunas e linhas vão mudando e ganhando nomes diferentes? Foi preciso fazer seleções, excluir, definir o que realmente era importante e assim harmonizar as bases.
Parece muito técnico? É que para saber se um programa social impacta ou não na incidência de doenças ou mesmo num desfecho como a morte, é necessário fazer esse alinhamento ao longo do tempo. E assim saber contar a história das Donas Marias, dos seus filhos e netos, que ao longo do tempo precisaram de benefícios sociais. E eis que surge um novo desafio: nesse período, o beneficiário pode ter sido empregado e deixou de receber e ficou fora do programa. Portanto, trata-se de uma coorte dinâmica, esses indivíduos se separam, empregam-se, ganham novos filhos, netos, casam-se. “Tudo isso tem que ser considerado em um estudo de observação longitudinal”, explica Pita.
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