09/01/2023
Luiz Felipe Stevanim (Revista Radis)
Uma nuvem tóxica se espalhou pela comunidade quilombola de Jejum na tarde do dia 23 de março de 2021, em Poconé, município pantaneiro a 100 km de Cuiabá. Vizinhos a uma plantação de soja, os moradores começaram a reclamar de coceira nos olhos, náusea e dores de cabeça e garganta. Máquinas iniciavam a colheita do grão, lançando no ar uma camada densa de pó misturada ao dessecante, produto químico aplicado, dias antes, para acelerar a secagem da soja. A tempestade de poeira invadiu as casas, recobriu o solo e contaminou caixas d’água, poços artesianos e as hortas dos quintais.
Com sintomas de intoxicação aguda por agrotóxico, as famílias atingidas precisaram deixar suas casas para não continuarem expostas ao veneno disperso no ar. No dia seguinte, acionaram a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), no Mato Grosso, e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que fizeram uma denúncia ao Ministério Público do Trabalho (MPT). A pulverização ao lado da comunidade de Jejum havia ocorrido a poucos metros de distância, em desacordo com a norma estadual que determina que a aplicação de agrotóxicos deve respeitar a distância mínima de 90 metros de casas, fontes de águas e estradas.
“Quem está pulverizando sabe que tem gente morando ali, sabe que tem famílias que serão expostas”, afirma Franciléia Paula, engenheira agrônoma e educadora da Fase-MT. O episódio revela o racismo ambiental que anda junto com os impactos dos agrotóxicos sobre comunidades rurais, na visão de Fran, como é conhecida a quilombola que também integra a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e é vice-presidenta da Regional Centro-Oeste da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). Mesmo que não utilizem veneno em suas plantações, quilombolas, indígenas e pequenos agricultores são os mais afetados pelo avanço do agronegócio em áreas próximas a seus territórios.
Ela conta que as denúncias feitas pelas comunidades quilombolas de Mato Grosso “foram totalmente invisibilizadas pelo poder público”. “Era como se a vida dessas comunidades pouco importasse”, aponta, ao ressaltar que não bastava a evidência de intoxicação das famílias. “Esse episódio mostrou como o poder público se colocou omisso e a importância do Ministério Público para dar o apoio à nossa segurança, porque estávamos denunciando produtores de soja, o que não é fácil de se fazer em um país que assassina as pessoas que lutam por seus direitos”, pontua. Com a denúncia, um inquérito civil foi aberto e o Instituto de Defesa Agropecuária do Mato Grosso (Indea) autuou o fazendeiro responsável, mas ainda não houve reparação para as vítimas, que incluem crianças, adultos e idosos.
O episódio ocorrido na comunidade de Jejum, em Mato Grosso, é um dos 30 casos de populações atingidas por agrotóxicos reunidos no dossiê Agrotóxicos e Violações de Direitos Humanos no Brasil, divulgado em setembro de 2022 pela organização Terra de Direitos e pela Campanha Permanente contra os Agrotóxicos. Cursos de água, moradias e plantações são contaminados pelo veneno disperso no ar - e mesmo com os impactos no ambiente e na saúde, trabalhadores rurais e populações indígenas e quilombolas sofrem com ameaças e encontram dificuldade para denunciar e barrar esse tipo de agressão, como revela o relatório.
Dos 30 casos analisados, apenas três tiveram reparação parcial para as vítimas; os outros 27 seguem sem qualquer tipo de resposta a quem teve sua vida e seu território atingidos. As violações coletivas mais recorrentes, aponta o dossiê, são provocadas pela pulverização aérea, seguida de pulverização terrestre, exposição em ambiente de trabalho e despejo inadequado. “Na imensa maioria dos casos de violações coletivas causadas por agrotóxicos, não há a responsabilização dos agentes violadores e a reparação das vítimas”, afirma à Radis uma das autoras do estudo, Naiara Bittencourt, advogada popular na Terra de Direitos e integrante do Grupo de Trabalho (GT) em Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
A exposição forçada a agrotóxicos é uma das faces do agronegócio baseado no desmatamento e na agressão à saúde de comunidades inteiras que vivem em uma relação de equilíbrio com a terra. “Em 2022, também se silenciam as vítimas ou os inocentes violados em seus corpos e territórios pelo uso de agrotóxicos, especialmente comunidades camponesas, de agricultores familiares, tradicionais e povos indígenas”, afirma o dossiê. Invisibilizadas pelo poder público, Radis mostra como essas comunidades buscam alternativas para sobreviver ao avanço do veneno e para construir outro modelo de agricultura.
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