As mulheres e meninas venezuelanas que migraram para o Brasil fazem pouco uso de métodos contraceptivos, têm muitos filhos e vieram em busca de serviços de assistência à saúde, motivação para migrar que perde apenas para a fome. Cerca de 10% delas chegaram ao Brasil grávidas. As informações são de uma pesquisa inédita da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), coordenada pela Universidade de Southampton, da Inglaterra. O estudo revela condições do processo migratório e os impactos da migração forçada sobre a saúde sexual e reprodutiva de mulheres e adolescentes. No total, 2.012 migrantes de 15 a 49 anos que chegaram ao Brasil entre 2018 e 2021 foram entrevistadas em Manaus (AM) e Boa Vista (RR). As entrevistadoras também foram venezuelanas.
Estudo revela condições do processo migratório e os impactos da migração forçada sobre a saúde sexual e reprodutiva de mulheres e adolescentes (foto: Divulgação)
A separação de mães e filhos é um dos dados ligado à saúde das migrantes que mais preocupa. O estudo mostra que cerca de 25% das mães venezuelanas deixaram pelo menos um filho no país de origem. Numa auto avaliação durante a pesquisa, foram justamente elas que relataram pior estado de saúde, assim como as que sofreram algum tipo de violência no percurso até a chegada ao Brasil.
Entre as migrantes venezuelanas, 40% tem dois ou três filhos e 16%, quatro ou mais. As taxas de fecundidade são consideradas altas, o que é prejudicial também do ponto de vista financeiro, já que, além de precisarem alimentar e cuidar de muitas crianças, essas mulheres acabam impedidas de trabalhar porque precisam ficar com os filhos. Quase 80% das migrantes vivem com menos de um salário mínimo. Uma das recomendações feitas pela pesquisa é a disponibilidade de creches e escolas para as crianças e adolescentes venezuelanas.
Em meio a este cenário, apenas 47% das venezuelanas no Brasil usam algum método contraceptivo, enquanto entre as brasileiras, a média é de 80%. O percentual das estrangeiras se manteve estável em relação ao comportamento delas enquanto ainda estavam na Venezuela. A pesquisa mostra ainda que 63% das migrantes ativas sexualmente não utilizaram preservativo masculino nenhuma vez nos últimos 12 meses e 53% relataram usar algum contraceptivo, sendo o injetável o método mais recorrente. “O acesso aos métodos contraceptivos das venezuelanas após a chegada ao Brasil se deu principalmente pelos serviços públicos de saúde, mas muitas ainda compram, apesar da carência de recursos. Isso quer dizer que, apesar da oferta, não há facilidade para essas mulheres encontrarem os métodos que são oferecidos gratuitamente. Há alguma barreira no acesso aos métodos e isso precisa ser resolvido”, analisa a coordenadora da pesquisa na Ensp/Fiocruz, Maria do Carmo Leal.
Mães migram em busca de educação e tratamento de saúde para os filhos (foto: Divulgação)
A pesquisa também mostrou que, em um primeiro momento, muitas mulheres atravessavam a fronteira para ter filho no Brasil, utilizando o Sistema Único de Saúde (SUS), e depois voltavam à Venezuela. Em uma segunda onda, elas vieram para ter seus filhos e permanecer no país por tempo indeterminado. “Muitas eram adolescentes grávidas e chegaram sozinhas. No geral, as mães migram em busca de educação e tratamento de saúde para os filhos. Quando deixam filhos na Venezuela, o maior desejo é mandar dinheiro para que eles venham. Elas não rompem os laços”, explica a coordenadora da parte da pesquisa realizada pela UFMA, Zeni Carvalho Lamy.
Com os relatos das mulheres foi possível identificar o período de fechamento da fronteira por causa da pandemia de Covid-19 como o mais violento. Muitas venezuelanas pagaram ‘trocheiros’ para atravessar pela mata e, em diversas oportunidades, esses homens trocam o pagamento por sexo ou estupraram as mulheres. “O estigma, a discriminação, o medo, o trauma, assim como as desigualdades socioeconômicas e linguísticas afetam o acesso e o comportamento na busca de cuidados de saúde e serviços de proteção. Dados e pesquisas que identifiquem essas barreiras são necessários para garantir um melhores práticas clínicas e política”, afirma a coordenadora-geral do projeto Pia Riggirozzi, da Universidade de Southampton.
Atenção ao parto das venezuelanas repete atendimento às brasileiras
Na segunda etapa do inquérito coordenado pela Ensp/Fiocruz, o estudo não identificou discriminação no atendimento de saúde prestado às venezuelanas, inclusive na atenção pré-natal e no parto. Foram entrevistadas 575 mulheres brasileiras e 315 venezuelanas que tiveram seus filhos em maternidade pública da Região Norte do Brasil em 2022. O objetivo foi conhecer e comparar a atenção ao parto e as características obstétricas, assim como os desfechos clínicos entre as puérperas brasileiras e venezuelanas.
As estrangeiras iniciaram o pré-natal mais tardiamente e apresentaram menor número de consultas, já que algumas já chegaram ao Brasil gestantes (foto: Divulgação)
Ambas tiveram o mesmo acesso ao atendimento pré-natal, atingindo mais 95% das entrevistadas. As estrangeiras iniciaram o pré-natal mais tardiamente e apresentaram menor número de consultas, já que algumas já chegaram ao Brasil gestantes. De acordo com Maria do Carmo Leal, os pontos positivos e negativos do atendimento público de saúde têm atingido as brasileiras e as migrantes de forma semelhante. “Os resultados não são bons nem para nós nem para elas: temos muito baixo peso ao nascer (média de 8%), muita prematuridade (12%), muita morbidade materna grave (10%). Mas, há que se destacar a equidade no atendimento das migrantes dentro do SUS, reafirmando o caráter inclusivo do sistema de saúde”, afirma.
Documentário e livro de fotografias
O estudo teve como desdobramentos um livro de fotografias com imagens captadas pelas mulheres migrantes venezuelanas, que tiveram a oportunidade de mostrar o seu cotidiano através do próprio ponto de vista. Além disso, a pesquisa também rendeu um filme. O documentário Seguir Adelante (Seguir Adiante) é baseado nas histórias destas mulheres e meninas migrantes venezuelanas que fugiram da crise humanitária para reconstruir suas vidas no Brasil.
“A migração forçada aumenta todas as formas de injustiça de gênero. Para milhões de mulheres e meninas venezuelanas que fugiram da fome, problemas de saúde e violência migrar para o Brasil é uma forma de seguir em frente em busca de segurança e bem-estar. Mas o que acontece quando essas mulheres e meninas chegam a um suposto lugar seguro?”, diz a sinopse do filme de 26 minutos que já está pré-selecionado para festivais de cinema.
A pesquisa realizada por Fiocruz, UFMA e Universidade de Southampton faz parte do projeto Redressing Gendered Health Inequalities of Displaced Women and Girls (ReGHID), financiado pelo Conselho de Pesquisa Econômica e Social do Reino Unido. As equipes de pesquisas contaram com apoio de organizações e associações que auxiliam os migrantes venezuelanos, como o projeto Mexendo a Panela, em Boa Vista, e o Hermanitos, em Manaus.