12/05/2015
A data é emblemática: o curso de Residência Multiprofissional em Saúde da Família da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) está completando dez anos. A jornada foi longa na formação de profissionais de enfermagem, odontologia, psicologia, nutrição e serviço social para atuarem em equipes de saúde da família. E os desafios enfrentados não foram poucos, sejam durante o aprendizado em sala de aula, sejam na atuação de campo nas mais variadas unidades de saúde do município do Rio de Janeiro. Mas o resultado é único: uma trajetória vitoriosa para todos, tanto para os coordenadores do curso, quanto para os mais de 170 profissionais que passaram por esta Residência.
Mas o modelo de especialização que era ofertado há dez anos atende às necessidades atuais da saúde? O SUS continua enfrentando problemas no campo da formação? Esta e outras perguntas foram respondidas pela vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, em uma entrevista exclusiva para comemorar os 10 anos da Residência Multiprofissional em Saúde da Família.
Em sua fala, Nísia destaca a importância de se entender a Residência como uma modalidade diferenciada de formação, ‘favorecendo o encontro entre conhecimentos teóricos e práticos e, sobretudo, a articulação entre a academia e os serviços’ e reafirma o comprometimento institucional da Fiocruz em uma maior consolidação desta modalidade de ensino. Confira abaixo.
Informe Ensp: A formação em saúde no Brasil, de um modo em geral, é capaz de atender às demandas do Sistema Único de Saúde?
Nísia Trindade Lima: A formação em saúde no Brasil está muito distante desse ideal consagrado em nossa Constituição. O texto constitucional promulgado em 1988 estabelece no Art. 200. “Ao Sistema Único de Saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde”. Contudo são os imperativos do mercado e não os interesses da sociedade que vêm prevalecendo no processo de formação dos trabalhadores para a área de saúde.
Antes da criação do SUS, durante o processo de lutas políticas que caracterizaram o movimento pela Reforma Sanitária, muitos autores e militantes chamavam atenção para esta deformação dos sistemas educacional e de saúde, a exemplo dos importantes textos escritos por Carlos Gentille de Melo durante a década de 1970. Uma boa discussão sobre o tema encontra-se no número temático História dos trabalhadores da saúde, publicado em Revista Ciência & Saúde Coletiva (vol. 13, n.3, maio - junho de 2008).
Recentemente, muitas iniciativas importantes vêm ocorrendo, entre elas, no ano de 2003, a criação de uma secretaria específica para Gestão e do Trabalho e da Educação em Saúde no Ministério da Saúde. Contudo, o papel do Estado na formação dos profissionais e trabalhadores permanece como desafio. Nessa perspectiva, o Programa Mais Médicos para o Brasil representa uma mudança decisiva, não apenas pelo provimento em locais, até então, fora do mapa da atenção à saúde, como especialmente pelas mudanças na formação médica, com a ênfase no papel das redes de atenção nos diferentes níveis de complexidade e da atenção básica na organização do acesso e coordenação do cuidado no sistema de saúde.
Segundo uma visão prospectiva, tal como se constatou no projeto Saúde Amanhã, a formação e a educação permanente em saúde deve atender ao novo tipo de demanda, gerada pela transição demográfica e epidemiológica, com o envelhecimento da população e o aumento das doenças crônicas. Isto sem ignorar as diferenças regionais e locais características de nossos diversos brasis.
Ao lado de desafios mais recentes, persistem questões relacionadas ao subfinanciamento do SUS, à precariedade dos vínculos de trabalho e à necessidade de valorização dos trabalhadores através de planos de carreira adequados. Destaca-se também a necessidade de propor diretrizes e ações para o conjunto das profissões relevantes para o SUS, inclusive no que se refere aos profissionais técnicos de nível médio.
Permanece ainda como desafio a aproximação entre a academia e os serviços. As residências constituem um importante caminho para superar essa distância que historicamente preocupa os construtores do sistema de saúde no Brasil.
Qual é a importância da Residência como um dispositivo para a formação dos profissionais em saúde?
Em termos gerais, a Residência é uma modalidade diferenciada de formação, favorecendo o encontro entre conhecimentos teóricos e práticos e, sobretudo, a articulação entre a academia e os serviços. Sua expansão no Brasil - e aqui refiro-me não apenas ao processo de ampliação efetiva da residência médica prevista no Programa Mais Médicos para o Brasil -, é fundamental para uma formação adequada às diretrizes do SUS. Esta importância adquire um significado especial no caso das residências multiprofissionais, uma vez que elas estão orientadas por uma visão diferenciada da atenção e do cuidado, na qual, não apenas as diferentes competências profissionais são reconhecidas, mas devem efetivamente estar integradas.
A Residência Multiprofissional em Saúde da Família vem contribuindo para que se rompa com a lógica tradicional de delimitação estreita de fronteiras profissionais, promovendo a integração entre saberes e práticas multiprofissionais no cotidiano das equipes de atenção à saúde. Penso ser esta orientação fundamental para o SUS que queremos.
No documento de Formação e Educação para o SUS: diretrizes, desafios e encaminhamentos, aprovado pelo Conselho Deliberativo da Fiocruz, em novembro de 2014, e também no VII Congresso Interno da Fiocruz, a importância da Residência Multiprofissional foi reconhecida, especialmente pelo seu papel na percepção crítica da gestão em saúde, no diálogo entre diferentes saberes e práticas e na aproximação entre a academia e os serviços de saúde.
Contudo, temos muito que avançar na Fiocruz no apoio às Residências e na maior integração entre os programas existentes. Com este objetivo, no âmbito do ciclo de debates preparatórios para o Seminário Educação e Saúde para a Fiocruz do Futuro, a ser realizado em agosto de 2015, promovemos o debate Novos Desafios da Residência na Política de Atenção Básica, em dezembro de 2014, contando, entre outras contribuições, com a experiência e a qualidade de reflexão acumuladas pela Ensp.
Não há um risco de superposição de funções entre médicos e outros profissionais de saúde por conta dos modelos de residência existentes: médicas e multiprofissionais?
Não vejo este risco, pois acredito na complementaridade dessas modalidades de residência, com respeito aos diferentes papéis profissionais e à interdisciplinaridade e integração de saberes e práticas inerente ao modelo multiprofissional. O problema está nas dificuldades para que esses ideais se concretizem em um sistema de saúde e uma sociedade onde muitas vezes só a formação médica é valorizada e, ao mesmo tempo, é desestimulada a participação dos médicos nas iniciativas integradoras e multiprofissionais. Os médicos interessados em cursar as Residências Multiprofissionais não conseguem o reconhecimento dessa formação pelo Conselho Federal de Medicina, o que inviabiliza sua participação nesses programas. Este é hoje um desafio importante para o SUS: o fortalecimento, a um só tempo, das residências médicas e também das multiprofissionais voltadas para a atenção básica e para a saúde da família.
Note-se também que não se trata de desvalorizar as residências profissionais que cumprem um papel importante. Além das residências médicas, oferecemos na Fiocruz, a exemplo de outras instituições, importantes programas de residências em áreas especializadas da Enfermagem.
Quantos e quais são os cursos de residência que a Fiocruz oferta atualmente?
A Fiocruz oferta atualmente 18 programas de residência profissional – medicina e enfermagem – e programas de residência multiprofissional, conforme quadro abaixo. São financiados com recursos institucionais, do Ministério da Saúde e de secretarias estaduais de saúde. Trata-se de uma oferta expressiva pelas áreas cobertas e número de vagas e faz-se necessária uma ação sistemática de compartilhamento de experiências e integração, tal como discutimos no evento Novos desafios da residência na política de atenção básica, realizado no IFF em dezembro de 2014.
A Comissão Nacional de Residências aprovou, em novembro de 2014, um selo/certificação reconhecendo a especialização da Ensp como uma residência multiprofissional. Todos os alunos, desde 2005, sairão titulados como especialistas e residentes. Isto representa um avanço para a área?
Nísia Trindade Lima: Sem dúvida, trata-se de importante avanço, ainda mais se consideramos que os cursos de especialização encontram hoje dificuldades no que se refere à adoção de um marco regulatório por parte do Conselho Nacional de Educação. A Especialização em Gestão da Atenção Básica da Ensp atende aos requisitos da formação em serviço, supervisionada por profissionais capacitados (tutoria e preceptoria), e ocupa um lugar estratégico para a mudança na formação e nas práticas de saúde.
A residência multiprofissional em Saúde da Família, ofertada pela Ensp, está entrando em sua 10ª turma. A data é um marco, tanto para a Escola, quanto para a Fiocruz, destacando a qualidade dos cursos aqui ofertados e ressaltando o papel de nossa instituição para com a sociedade brasileira. Que recado a senhora deixaria para a coordenação do curso e para os alunos que já passaram ou passarão pelo curso?
Mais do que recado, gostaria de registrar o agradecimento da Presidência da Fiocruz a todos – diretorias da Ensp, coordenadores, docentes, estudantes, secretaria acadêmica – enfim a todos que, ao longo desses dez anos, construíram um programa com essa qualidade e relevância. Um agradecimento muito especial aos professores, portadores da afirmação cotidiana do valor da saúde em uma perspectiva multiprofissional e integrada.
Sei que a coordenação está iniciando uma pesquisa de egressos e com ela, certamente, poderemos saber muito sobre o impacto da formação oferecida pela Ensp/Fiocruz na Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Gestão da Atenção Básica.
Aos alunos que aqui se formaram e aos que hoje frequentam o curso de residência multiprofissional, o desejo de a experiência na Fiocruz se manter como referência profissional e de vida. A todos uma mensagem de esperança e um chamado à construção conjunta do SUS e de uma sociedade com mais justiça, menos inequidades e, dessa forma, com mais saúde.