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17/04/2020

Oswaldo Cruz no combate às epidemias

Gisele Sanglard e Renato da Gama-Rosa Costa*


As ações de Oswaldo Cruz à frente da Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), órgão responsável pelas ações de combate e controle à epidemias e a saúde dos portos no antigo Distrito Federal, são lembradas pela Revolta da Vacina, evento que transformou a então Capital Federal em uma verdadeira praça de guerra: a população carioca se rebelava contra a vacinação obrigatória contra a varíola imposta pelo médico. Estaríamos revivendo este momento, em que, por conta da descrença na letalidade do Covid-19, uma parcela da população se recusa a cumprir o isolamento social e evitar o contágio? E por conta dessa descrença, age até com violência para exigir “direitos” de mobilidade social que põe em risco toda a sociedade? 

O fato é que Oswaldo Cruz combatia três epidemias diferentes ao mesmo tempo – peste bubônica, febre amarela e varíola – e, em todas, tinha poder de polícia. A autorização para Oswaldo Cruz agir com plenos poderes foi dada pelo presidente da República Rodrigues Alves. A Polícia Sanitária era formada por inspetores sanitários, de isolamento e de desinfecção, delegados de saúde, demografistas, chefes de laboratório e diretores de distrito e dos hospitais, além de médicos, farmacêuticos e diversos funcionários administrativos. 

A Polícia Sanitária punha em prática as medidas profiláticas contra a varíola e a febre amarela – principais epidemias que assolavam o Brasil em geral e o Rio de Janeiro, em particular, e que geravam a sensação de grandes prejuízos econômicos. Combatê-las, porém, era necessário para garantir a segurança sanitária do país, à semelhança dos dias de hoje. As ações significaram a divisão da cidade em dez distritos sanitários; eram nesses distritos que os inspetores sanitários atuavam vacinando em massa a população e as brigadas mata-mosquito percorriam as ruas buscando destruir os focos de suas larvas, as águas estagnadas, e entravam nas residências para verificar as condições higiênicas. Naquelas casas onde a presença do mosquito transmissor havia sido detectada, aplicavam enxofre e piretro.  

Oswaldo Cruz, entretanto, não criou estas medidas de sua cabeça. Ele se apropriou das ações postas em prática na França. Na biblioteca particular de Oswaldo Cruz encontra-se o livro Vacccination et revaccinations obligatoires: en application de la loi sur la protection de la Santé Publique, de G. Borne, lançado pela C. Naud Éditeur, Paris, 1902, evidenciando o conhecimento da lei francesa de 1902 pelo cientista. 

Essa lei, que ficou conhecida como a primeira Lei Federal Francesa de Proteção à Saúde Pública, estabelecia regras uniformes de higiene para toda a França e autorizava os funcionários públicos a inspecionar as habitações privadas para verificar sua salubridade. Na prática, estendia a noção de obrigação aos prefeitos, aos médicos e aos poderes públicos e obrigava os prefeitos a agirem concretamente na luta contra as doenças transmissíveis. Não obrigava apenas a vacinação antivariólica, mas a revacinação aos 11 e aos 21 anos de cada cidadão. 

No Brasil, os poderes de Oswaldo Cruz ficaram restritos ao Distrito Federal, mas foram suficientes para debelar as epidemias de forma eficiente e duradoura, como reforça, inclusive, a memória histórica da população sobre a ação do médico. Atuou até sua morte, em 1917, como servidor do Instituto Soroterápico Federal, criado em 25 de maio de 1900, em Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro, e que sob sua liderança se tornaria, em 1908, o Instituto Oswaldo Cruz. Esse mesmo instituto se transformaria, nos anos de 1970, na Fundação Oswaldo Cruz, a mesma instituição que lidera, hoje, as maiores ações de combate ao novo Corona Vírus no Brasil e uma das mais importantes na América Latina, como mesmo reconhece a OMS.  

Ao assumir a direção do então Instituto Soroterápico, em dezembro de 1902, Oswaldo Cruz teria a missão de empreender a fabricação de soros e vacinas e atacar as epidemias de peste, febre amarela e varíola. Com sua nomeação, em 23 de março de 1903, para Diretor Geral de Saúde Pública – função equivalente à época ao de ministro da saúde de hoje -, cargo em que ficou até fins de 1909, Oswaldo Cruz conseguiria as verbas necessárias para erguer melhores instalações para seus laboratórios em Manguinhos, para desenvolver as pesquisas e preparar as ações estratégicas de combate às epidemias, construindo um complexo científico de grande porte e com tecnologia das mais avançadas à época. 

Para a construção dos edifícios então propostos para Manguinhos, durante a gestão de Oswaldo Cruz, o arquiteto português Luiz Moraes Jr., buscou evidenciar a condição de edifícios próprios para pesquisas em saúde, dotando-os das melhores instalações e infraestruturas laboratoriais e científicas existentes. A concepção arquitetônica do edifício principal e sua simbologia no imaginário social como sede da Fundação Oswaldo Cruz são muito discutidas pela população e especialistas de diversas áreas do saber. O imponente castelo que se ergue com destaque na paisagem carioca, em meio à mata circundante e por cima do que é hoje a Avenida Brasil, teria tido influências as mais diversas, de um observatório astronômico em Paris, a uma sinagoga em Berlim e um palácio em Granada, Espanha.  

No entanto, a principal característica a se destacar no momento é sua vocação para atender os princípios exigidos à época para uma instituição de saúde: pesquisa científica de ponta para garantir higiene e salubridade. Tais princípios foram traduzidos nas edificações de Manguinhos: ventilação cruzada, pés direitos altos, materiais fáceis de se lavar - como azulejos e pisos hidráulicos, instalações com água corrente, esgoto, eletricidade, entre outros. Elementos que, naquela época, e mais ainda hoje em dia, no combate ao Covid-19, se mostram tão necessários, mas ainda inexistentes em muitas casas e cidades brasileiras.  

Diante desses graves desafios atuais e da experiência histórica de Oswaldo Cruz, precisamos refletir e perceber que políticas prioritárias a sociedade brasileira deixou de implementar, pois estão em risco as camadas mais pobres e vulneráveis de nossa população. O legado positivo dessa epidemia, se é que se pode pensar assim, seria mudar a forma como os governos federal, estadual e municipal têm agido para atender às classes mais necessitadas, passando a encarar tais problemas como de todos, dotando-as de elementos básicos de saneamento, como água e esgoto encanados, de habitação, como moradias salubres e ruas urbanizadas, e atendimento assistencial para todos, fortalecendo o Sistema Único de Saúde, o SUS, tão reverenciado nas recentes ações de tratamento aos infectados pela nova epidemia.

*Gisele Sanglard é pesquisadora do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS)

Renato da Gama-Rosa Costa é pesquisador do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das CIências e da Saúde (PPGPAT)

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