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07/02/2023

Pesquisador da Fiocruz explica como crise humanitária se originou no território Yanomami

Hellen Guimarães (Agência Fiocruz de Notícias)


Para entender como a crise começou, é preciso compreender a organização social Yanomami. Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública, Paulo Basta lembra que tradicionalmente, sob o ponto de vista cultural e histórico, o povo yanomami é considerado um povo de alta mobilidade, que costumava se sustentar não somente da coleta e da caça, mas também da criação de roças, plantações e outras atividades. Comunidades que não eram muito grandes, em torno de 50 a 100 pessoas, se estabeleciam, montavam uma aldeia num determinado espaço da floresta e exploravam seus recursos naturais daquele espaço: a caça que estava no entorno, a pesca que ficava perto do rio, produtos de coleta da natureza de acordo com as estações do ano, a castanha, o cupuaçu, açaí, alguns cogumelos, além de plantarem mandioca, batata doce, cará, inhame, milho, banana, etc.

A cada sete anos, essa área da floresta ficava desgastada. Usando um modo de manejo sustentável, a população migrava daquele lugar e procurava uma outra área para se assentar, para começar uma nova aldeia e explorar aqueles recursos. Isso promovia um certo equilíbrio, e a região antiga tinha o tempo necessário para se regenerar. O espaço territorial fornecia todos os nutrientes e satisfazia as necessidades vitais daquela população.

“Esse cenário muda com o estabelecimento do contato permanente, que no Brasil remonta à década de 1940, com a chegada de missionários religiosos, estabelecimento das missões, depois já na ditadura, com a abertura da Perimetral Norte, uma estrada que rasgou o território Yanomami no meio, a chegada de militares, a chegada dos agentes do antigo Serviço de Proteção dos Índios (SPI), depois a Funai e a chegada dos serviços de saúde. Esse processo de sedentarização, ao mesmo tempo que deu acesso a medicamentos, a alguns benefícios e serviços públicos, provocou um escasseamento maior das fontes naturais de alimentos. Aí as pessoas precisam andar mais quilômetros para conseguir uma caça, precisam andar mais para buscar produtos de coleta, frutos, sementes, cogumelos, porque o entorno da aldeia já estava todo exaurido”, explica Basta. 

“Esses processos de sedentarização já têm décadas. Essa região aonde vamos, Maturacá, tem uma missão salesiana que foi instituída na comunidade em 1954, que completa 70 anos no ano que vem. O processo de mobilidade, que era de 7 anos, foi praticamente interrompido e a comunidade está instalada no mesmo lugar há 70 anos. Isso provocou um escasseamento das fontes naturais de alimento para a própria população, e lentamente foram introduzidos aí alimentos industrializados que não faziam parte do universo, do repertório alimentar dos povos tradicionais”, diz.

Devastação completa pelo garimpo

“Com a chegada do garimpo, a situação fica ainda mais grave porque, à medida que eles precisam percorrer maiores distâncias para encontrar caça e produtos alimentares, eles vão ter também o conflito com o garimpo que está crescendo para dentro do território. Por sua vez o garimpo, quando entra na terra indígena, tem como primeira providência provocar o desmatamento, a derrubada da cobertura vegetal. Cavam buracos, desviam o curso do rio, fazem aquelas cavas enormes para tentar retirar os minérios e o ouro. Isso promove um processo em que os animais grandes, os mamíferos, a paca, a anta, que são alimentos preferenciais de caça pros indígenas, fogem (quando não são abatidos pelo próprio garimpo). Por sua vez, o mercúrio utilizado contamina o rio, deixando menos peixes; a área de devastação reduz a terra agricultável, então a área para você fazer uma roça na comunidade fica cada vez mais restrita. Isso promove uma insegurança alimentar para essa população e aí começa a questão da desnutrição. Falta comida, realmente falta comida nesse cenário”, destaca Basta.

Além disso, o pesquisador lembra que o garimpo se utiliza de diversas estratégias de cooptação dos povos indígenas, o que faz colapsar a estrutura social daquela comunidade. Na tentativa de obter uma autorização dos indígenas para atuar em seus territórios, que são vedados ao garimpo e à mineração pela Constituição Federal de 1988, os garimpeiros adotam diversas práticas que agravam ainda mais a situação dos Yanomami.

“Uma delas é distribuir cesta básica, alimentos industrializados, enlatados, que são ricos em sais, sódio, gordura, açúcar, paupérrimos em proteína e nutrientes. Há uma alteração do padrão alimentar. Crianças e idosos ficam desnutridos, como a gente viu nas imagens, e adultos jovens começam a ter sobrepeso, obesidade, diabetes, hipertensão, doenças crônicas não transmissíveis que não existiam tradicionalmente”, diz.

Outra estratégia de cooptação para permanecer no território têm como alvo os adultos jovens, especialmente os homens. Os garimpeiros seduzem esses Yanomami com promessas de enriquecimento fácil, de livre acesso a ouro, ao dinheiro, a bens e mercadorias que vêm da cidade, a produtos eletrônicos, etc. Segundo o pesquisador, é comum que eles se dirijam ao cacique da comunidade e deem a ele um motor de energia elétrica, que não havia lá; um motor para colocar no barco; o próprio barco e, às vezes, levem até medicamentos em troca da permissão para atuar naquela área. Assim, gradualmente, o garimpo vai corroendo as estruturas sociais, se infiltrando e penetrando no território. 

Basta ressalta que esse processo de cooptação tira o adulto jovem, o homem, principalmente, de uma comunidade onde tradicionalmente há uma divisão sexual do trabalho: o homem vai derrubar as árvores e abrir uma clareira na floresta, e a mulher fica responsável por plantar, fazer o manejo, coletar esse material e trazer para casa para alimentar a família. Porém, esse material é basicamente composto por raízes que têm carboidrato. A proteína, lembra o pesquisador, é atribuição do homem. Ele deve sair para caçar, pescar, e trazer produtos para alimentar a sua esposa, seus filhos, sua família. Quando esse homem é cooptado pelo garimpo, ele deixa de cumprir sua tarefa.

“Com isso, duplamente o garimpo está afetando aquela família: primeiro tira esse homem da comunidade, deixando a família desguarnecida, numa condição de insegurança (podendo ser agredida e sofrer qualquer tipo de ameaça). E, ao mesmo tempo, ele tira a fonte de provimento de proteína daquela casa, daquela criança, daquela mulher. Para piorar a situação, o uso do mercúrio no garimpo contamina os rios, os peixes, todos os animais que moram dentro do rio, que são fontes de alimento. Um alimento que outrora era saudável e abundante; agora, a disponibilidade proteica é restrita e, quando a proteína chega, muitas vezes já está contaminada. Além de não receber alimento suficiente, a criança recebe comida envenenada. Esses são vários mecanismos pelos quais o garimpo afeta diretamente o estado nutricional desse povo e isso pode resultar nessas cenas que a gente tem visto aí nos últimos dias”, concluiu.

Saude Indigena

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