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26/10/2016

Pesquisadora fala sobre o consumo de álcool por jovens no Brasil

Mônica Mourão (Agência Fiocruz de Notícias)


Segundo dados de 2010 da Organização Mundial de Saúde (OMS), o uso abusivo de álcool causa cerca de 2,5 milhões de mortes por ano, das quais uma parte significativa é de jovens. As Américas, segundo dados do órgão (2015), detêm os maiores índices globais de consumo médio. Na região, a maior parte dos adolescentes beberam pela primeira vez antes de completar 14 anos e têm consumido uma quantidade cada vez maior da substância quando bebem. Interessada em compreender as causas desse fenômeno entre este grupo etário e possíveis intervenções, a pesquisadora Denise de Micheli, tem se debruçado sobre o tema. Denise é pós-doutora em Ciências, professora adjunta e chefe da disciplina de Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas e vice-coordenadora do programa de pós-graduação em Educação e Saúde na Infância e Adolescência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), além de ser membro da Associação de Educação Médica e Pesquisa em Abuso de Substâncias (Amersa), sediada nos Estados Unidos, e da Associação Brasileira Multidisciplinar de estudos sobre Drogas (Abramd). Denise é ainda consultora da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad).

AFN: Em primeiro lugar, porque os jovens são considerados parte de uma população vulnerável ao uso abusivo do álcool? O que isso quer dizer?

Denise de Micheli: Os adolescentes, em especial, representam uma população de elevado risco justamente por se encontrarem num período de maior exposição a comportamentos de risco de modo geral.

AFN: Dados da OMS indicam que as mulheres das Américas têm a maior prevalência de transtornos por uso de álcool no mundo. O órgão relata ainda que o consumo de álcool neste grupo tem aumentado em volume e frequência, igualando-se ao dos homens em muitos países. Essa “igualdade” no consumo poderia indicar uma maior desigualdade de gênero nos desfechos de saúde? Nesse sentido, as meninas jovens e adolescentes representam um segmento para o qual se deve destinar ainda mais atenção?

Denise de Micheli: Os dados epidemiológicos da década de 90 mostravam um consumo de álcool mais baixo entre meninas, quando comparado aos meninos. Este comportamento vem mudando significativamente nos últimos levantamentos epidemiológicos, mostrando níveis de consumo de álcool muito semelhante entre meninos e meninas. Acredito que isto se deva a vários fatores, entre eles a maior liberdade que as adolescentes tem tido, bem como a necessidade de mostrar equidade em relação aos meninos. No entanto, considerando que a adolescência é um período de maturação de estruturas físicas e do sistema nervoso, do cérebro, o consumo de substâncias lícitas e ilícitas nesta fase é extremamente prejudicial tanto para os meninos quanto para as meninas, podendo acarretar  prejuízos irreversíveis dependendo da substância e da frequência de consumo.

AFN: Quais são os danos que o álcool pode causar nos jovens e adolescentes?

Denise de Micheli: Até alguns anos, acreditava-se que o cérebro completava seu processo de maturação no final da infância. Hoje, através dos estudos de neurociências, sabe-se que o cérebro segue evoluindo durante toda a adolescência, completando seu processo de maturação por volta dos 25 anos. E muitos fatores podem retardar ou mesmo impedir a maturação adequada. Entre esses fatores está o uso de álcool e outras drogas. O álcool é uma substância psicotrópica que em baixas doses provoca relaxamento e extroversão, mas, em doses elevadas, provoca depressão do sistema nervoso central, o SNC, acarretando uma série de efeitos negativos, como rebaixamento do julgamento crítico, diminuição dos reflexos, entre outros. O uso de álcool por adolescentes interfere no  funcionamento cerebral pleno. Aumenta a impulsividade e, consequentemente, comportamentos de risco, aumentando a chance em envolvimento em comportamentos de risco, como relação sexual sem uso de preservativos, envolvimento em brigas, acidentes, etc. Além disso, como o sistema de recompensa cerebral é mais sensível nos adolescentes, os efeitos do álcool e de outras drogas acaba sendo mais intenso e prazeroso, fazendo com que este comportamento de consumo seja repetido. Quando o consumo de álcool ocorre em grandes quantidades pode causar shut down ou blackout, que é o apagamento, podendo acarretar acidentes e/ou expor o adolescentes a ainda mais riscos. Uma vez que na adolescência todo o cérebro encontra-se em franco processo de amadurecimento, o hipocampo, estrutura cerebral relacionada à memória e à formação de novos neurônios, encontra-se em plena atividade, ficando mais suscetível aos efeitos neurotóxicos do álcool e, consequentemente, comprometendo o processo de aprendizagem e concentração. O córtex pré-frontal também é afetado pelo uso elevado de álcool na adolescência, provocando déficits cognitivos como, dificuldade de planejamento a longo prazo, pensamento crítico e inabilidade na tomada de decisões. Existem inúmeros estudos mostrando que se o consumo de álcool se mantém ao longo da adolescência, muitos dos prejuízos cognitivos  podem ser irreversíveis.

AFN: As bebidas alcóolicas, no Brasil, inclusive as de alto teor da substância, são bastante acessíveis não só por serem encontradas em qualquer bar ou mercado, como também por serem baratas. Tornar o preço do álcool menos acessível poderia ser uma política efetiva para reduzir o consumo, em especial, entre os jovens e adolescentes?

Denise de Micheli: Embora no país exista uma legislação que proíba o comércio de bebidas alcoólicas para menores de 18 anos, na prática, infelizmente, isto não é seguido de modo tão rigoroso. Um estudo recente realizado no Brasil mostrou que 95% dos adolescentes conseguem adquirir bebidas alcoólicas em qualquer lugar e sem restrição. Sem dúvida a disponibilidade e facilidade de aquisição contribui para o aumento do consumo entre adolescentes. Acredito sim que se o preço fosse menos acessível, poderia favorecer a diminuição do consumo. No entanto, uma série de fatores devem acontecer em sincronia para que o consumo de álcool entre adolescentes de fato seja reduzido.

AFN: E como fazer para também limitar a disponibilidade do álcool, no sentido de controlar o acesso ao álcool? No Brasil, por exemplo, embora haja idade mínima para a compra, sabemos que menores de 18 anos têm acesso à substância com facilidade. A OMS sugere medidas como estabelecer um monopólio governamental, limitar as horas e os dias de venda e aplicar a legislação que determina a idade mínima para a compra. Para você, essas medidas seriam eficazes?

Denise de Micheli: Como mencionei, acho que uma série de iniciativas devem ser feitas em conjunto. Temos visto que ações isoladas são pouco efetivas e com resultados pouco duradouros.

AFN: Quase 70% dos países das Américas não regulamentam a publicidade do álcool na televisão nacional, ou contam apenas com a autorregulamentação pela indústria do álcool. Os códigos de autorregulamentação voluntários são eficazes. Como você vê a questão da publicidade e o consumo de álcool entre jovens?

Denise de Micheli: Sem dúvidas a mídia exerce um poder e uma influência enormes, principalmente nas crianças e adolescentes. A imagem de pessoas bem-sucedidas, alegres e de bem com a vida vinculada a bebidas alcoólicas favorece muito o consumo entre os adolescentes. Na minha opinião, deveria haver uma restrição severa sobre a publicidade de bebidas alcoólicas nas mídias em geral, impressa, televisiva, etc.

AFN: Diferente de outras drogas, o consumo de bebida alcoólica é aceito e até estimulado pela sociedade. Muitas vezes os pais temem que os filhos tenham acesso a maconha, cocaína ou ecstasy em uma festa, mas naturalizam o uso de álcool. Nesse sentido, como pais e educadores podem lidar com o assunto para prevenir o uso abusivo da substância?

Denise de Micheli: Na escola, a prevenção do consumo de álcool e outras drogas pode começar a partir do treinamento de habilidades socioemocionais. Já é bem estabelecida a relação do  consumo de álcool e outras drogas com baixa autoestima, baixa autoeficácia e deficiência em outras habilidades socioemocionais. Neste sentido, creio que o treino dessas habilidades na infância e início da adolescência podem refrear o consumo de substâncias na adolescência. Também, uma vez que o primeiro uso de álcool acontece, em geral, na própria casa, os pais devem repensar o  próprio consumo bem como a relação que eles próprios têm com o álcool. Além disso, amor, carinho e supervisão são essenciais na adolescência.

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