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07/01/2019

Projeto resgata a história da Fiocruz Paraná

Fiocruz Paraná


Parte das comemorações de aniversário dos 10 anos do Instituto Carlos Chagas (ICC/Fiocruz Paraná), celebrado em 2019, o projeto Memória Histórica da Fiocruz Paraná (1999-2019), coordenado pelo historiador português Tiago Brandão, começou a ser desenvolvido a partir de julho de 2018. Especialista no registro de histórias institucionais, Tiago conta com o apoio de colaboradores da Fiocruz Paraná para elaborar um livro, produto principal do projeto, que ainda terá desdobramentos importantes como a organização do arquivo da unidade e a construção de um banco de imagens que registra a história do instituto em fotografias. As atividades incluem entrevistas com pesquisadores, visita a acervos históricos da Fiocruz, entre outras.

O pesquisador Tiago Brandão é formado em História, com ênfase em História Contemporânea e políticas científicas e, além de outras vinculações ao meio acadêmico brasileiro, é pesquisador integrado do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (IHC, NOVA-FCSH) (foto: Fiocruz Paraná)

 

Em entrevista, Tiago reforça a importância da iniciativa e fala sobre como o projeto teve início e sobre as etapas que serão desenvolvidas até agosto de 2019, quando a publicação será lançada durante os eventos programados para comemorar o aniversário de uma década da instituição. No início de 2019, em trabalho conjunto com a Assessoria de Comunicação da Fiocruz Paraná, será desenvolvido e colocado a diposição no site do Instituto um espaço que divulgará mais informações, o acompanhamento das etapas e curiosidades históricas relacionadas ao material reunido pelo projeto.

Fiocruz Paraná: Como surgiu o convite para desenvolver esse projeto?

Tiago Brandão: É um convite que, creio, surge como fruto da minha atuação no Brasil e sobretudo no Paraná, em particular aqui em Curitiba. Há cinco anos, venho desenvolvendo contatos acadêmicos, parcerias com colegas, docência universitária, cursos de extensão, participação em eventos e pesquisa em contextos latino-americanos. Após uma fase em que trabalhei mais numa perspetiva interdisciplinar, sobre políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação, vinha trabalhando mais com biografias, história das ideias e do pensamento ocidental. Com este projeto, retomei o trabalho com a história institucional, abordagem que me acompanhou durante vários anos na minha formação em história contemporânea.

Fiocruz Paraná: Sabemos que você já tem experiência com esse tipo de publicação. Qual a importância de um registro da história institucional de uma organização?

Tiago Brandão: Já tive a oportunidade de desenvolver projetos similares de história institucional. Primeiro um projeto coletivo, coordenado pela Prof. Dra. Maria Fernanda Rollo, em Lisboa (Portugal), sobre a história do Instituto Camões, organismo tutelado pelo ministério das relações exteriores em Portugal e uma instituição vocacionada para a cooperação cultural e para as questões da língua portuguesa, mas que ao mesmo tempo contemplava já um lastro de quase um século de antecedentes institucionais no campo da Ciência em Portugal, com a Junta de Educação Nacional (1929) e os seus apoios à pesquisa científica e à própria internacionalização da ciência portuguesa… Seguiu-se depois o meu doutorado, recentemente publicado pela editora Caleidoscópio, sobre a história do que veio a ser a principal agência de política científica em Portugal, então denominada Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (1967), hoje conhecida como Fundação para a Ciência e a Tecnologia (1997) .

Sobre a importância de um registro da história institucional, vejo a história institucional como uma ferramenta útil para a gestão e administração de uma instituição. Mesmo no setor privado, a moda crescente das histórias empresariais, da ‘business and corporate history’, têm demonstrado precisamente isso. As decisões, inclusive as de mercado, são tomadas com base na acumulação de conhecimento, seja tácito ou até codificado, e compreendendo também uma cadeia de circulação entre gerações e experiências pessoais. Como diria Marc Bloch (1886-1944), um sábio historiador do antigamente, “a ignorância do passado não se limita a negar a compreensão do presente; (…) compromete, no presente, a própria ação…”.

Portanto, não se trata apenas da preservação de nossa memória – muitas vezes marcada pelos acontecimentos do dia-a-dia, pela carga burocrática, como diria Carlos Chagas Filho (1910-2000), essa burocracia que “esmaga o bom-senso” [risos], “pela ótica do ‘previsionamento’, do ‘gerenciamento’ e da ‘cronogrametria’”, como se dizia, mas que é ao mesmo tempo uma realidade inescapável em nossos dias e sobretudo em Democracia, em que os recursos públicos devem de fato ser geridos com a maior transparência possível. Perante esse clima de dispersão que as rotinas obrigatórias por vezes nos impõem, a história institucional tem a capacidade de nos providenciar uma visão global, proporcionando um conjunto de ‘pontos cardeais’, mostrando-se dessa forma como um recurso complementar e instrumental para a orientação futura das instituições. A possibilidade de, por via do conhecimento da trajetória histórica, atribuir sentido aos problemas do cotidiano da instituição, permite inclusive olhar a gestão (pública) para além da visão do ‘sistema’. Perspetiva indiscutivelmente relevante para a governança democrática, mas por vezes redutora em termos do aprendizado e da riqueza que a realidade de nossas sociedades imprime.

Iluminando o leitor para além do emaranhado dos programas de financiamento e dos marcos legais envolvidos, um livro de história deste gênero propõe-se dar a conhecer não só esse quadro, do aparato legal e normativo que conforma a vida institucional; mas ao mesmo tempo também quer dar a conhecer os atores, os debates que precederam as escolhas entre diferentes possibilidades, incluindo as diferentes visões e as subjetividades em contraponto

Fiocruz Paraná: E isso se aplica ao ICC…

Tiago Brandão: Sim, uma organização como o Instituto Carlos Chagas, fazendo parte da rede de institutos técnico-científicos da Fiocruz, assume uma importante missão de promoção da saúde, compreendendo o desenvolvimento social, a geração e propagação do conhecimento científico e tecnológico, visando combater os grandes problemas de saúde pública brasileira e assim se posicionando também em função das prioridades do SUS [Sistema Único de Saúde]. Neste aspeto, o que é sem dúvida um sinal inequívoco do seu sucesso, o ICC insere-se num contexto mais amplo, o do Ceis [Complexo Econômico e Industrial da Saúde] e desempenhando um papel central para a própria sustentabilidade do SUS.

Por outro, os desafios que se colocam hoje a um instituto público como o ICC, ou à Fiocruz mais em geral, são sem dúvida de monta. Como sabemos, o próprio paradigma de um Estado socialmente responsável e interventor, assegurando à dignidade humana o saneamento, os cuidados básicos de saúde, etc., não são dados adquiridos no atual contexto político-ideológico que se vive por este mundo afora. E a história, neste quesito, tem sempre o condão de nos relembrar a perspetiva dos pioneiros, dos fundadores, dos debates seminais que pontuam esta história da ciência e da saúde pública no Brasil. Estamos pois a falar de uma história que deve compreender o lastro histórico destes temas, desde a área da saúde pública brasileira (higienismo oitocentista, campanhas de vacinação, o movimento cívico do sanitarismo brasileiro, a construção de um setor produtivo de imunobiológicos, etc.) à própria formulação das políticas públicas em Ciência, Tecnologia e Inovação, considerando o setor da saúde em específico, em que também se cruzam tradições distintas de pensamento e atuação, como, por exemplo, o neodesenvolvimentismo ou a escola schumpeteriana, as visões do sanitarismo público brasileiro ou o próprio ethos da comunidade de pesquisa… E claro, muito importante, o histórico regional, das iniciativas decorridas aqui no Paraná, de combate a endemias regionais – envolvendo pioneiros como Belisário Pena (1868-1939), Souza-Araújo (1886-1962), Cláudio Amaral (1934-), missões da Fundação Rockefeller, campanhas vacínicas, etc. –, no que é possível traçar o lastro de relações da Fiocruz com as autoridades estaduais, incluindo em iniciativas de promoção da área da saúde pública, envolvendo secretaria de Saúde do Estado e outros parceiros sociais, etc. Há muito para contar!

Fiocruz Paraná: O lançamento da publicação será um dos destaques das comemorações dos 10 anos de atuação da Fiocruz no Paraná. Como vê esse reconhecimento?

Tiago Brandão: Dez anos de vida é um marco fundamental na história da qualquer instituição. Após a sua implementação, qualquer instituição se depara com os desafios de sua consolidação – incluindo o importante processo da ‘passagem de testemunho’ entre as gerações! Nos 10 anos do Instituto Carlos Chagas – e nos 20 anos de atuação ‘oficial’ da Fiocruz no Paraná, que remonta, pelo menos, à criação do Instituto de Biologia Molecular do Paraná [IBMP], e com o qual o ICC continua cooperando dentro do parque tecnológico do Tecpar, em Curitiba – estas comemorações devem de fato ser uma oportunidade. Dupla, no sentido de dar a conhecer o trabalho desenvolvido ‘intramuros’ e no intuito de revisitar os valores e a missão de uma organização técnico-científica como o ICC. Ou seja, por um lado divulgando junto da sociedade aquilo que por vezes parece evidente para os especialistas – para se fazer entender e ouvir junto de um público leigo, é preciso saber comunicar e explicar aquilo que é elementar! Por outro, é importante renovar o sentido de parceria com as autoridades e os parceiros sociais, e no plano regional em particular, recordando a sua importância e aquilo que mobilizou as pessoas no passado, e assim dando a entender aos próprios protagonistas desta história – os cientistas, os tecnólogos, as pessoas que fazem a vida de uma instituição – o alcance político daquilo que fazemos no dia-a-dia das nossas atribuições e projetos científicos.

Fiocruz Paraná: Quais são as etapas de desenvolvimento do trabalho?

Tiago Brandão: Um projeto desta natureza envolve sem dúvida diferentes etapas. Começa primeiro com um trabalho bastante solitário de arquivo, isto é, de identificação de documentação primária no arquivo do ICC, organizando a recolha das fontes documentais, classificando e digitalizando os documentos mais relevantes. Esta busca por documentação levou também a visitar outros arquivos da Fiocruz, como o arquivo da Casa Oswaldo Cruz [COC/Fiocruz] no Rio de Janeiro, cujos fundos serão de enorme riqueza para contar alguns antecedentes e episódios históricos relevantes, envolvendo alguns pioneiros, cientistas e sanitaristas atuantes no Paraná. Igualmente, temos contactado algumas entidades aqui na capital paranaense – Sesa [Secretaria de Estado da Saúde], Lacen [Laboratório Central do Paraná], Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], Arquivo Público do Paraná, etc., entidades públicas que nos têm vindo a prestar colaboração, fornecendo informação e ajudando a identificar e reunir elementos importantes para contar esta história.

Ao mesmo tempo, sendo um projeto coletivo, estamos mobilizando outras energias, contando com a colaboração ativa de diversas pessoas dentro do ICC. Primeiro, no que respeita a incentivar a reorganização do arquivo físico da instituição, junto com o técnico responsável e em contacto com a própria COC no Rio de Janeiro – sobretudo em termos de repensar as práticas de preservação do seu património documental. Depois, temos a componente iconográfica do projeto, que envolve olhar o acervo de imagens, central em qualquer instituição nos tempos que correm, mas fulcral para uma instituição científica como ICC, que atua numa área como a da Biologia Celular e Molecular, que tem na imagem microscópica um suporte fundamental. Ou seja, o nosso trabalho tem naturalmente envolvido uma reorganização e classificação do acervo fotográfico, o que está em curso. Por fim, a importância que a história oral assume para contar uma história recente, também acabou definindo aqui uma outra etapa, na qual estamos presentemente muito comprometidos. Esse roteiro de entrevistas é aliás particularmente estimulante, permitindo-nos conhecer as pessoas e sua forma de ver e viver a instituição. Inclusive, através do seu depoimento vivo é possível conhecermos os contornos da prática científica contemporânea e sua própria perceção individual quanto à evolução e transformação da ciência brasileira nas últimas décadas.

Fiocruz Paraná: Já pode apontar os principais desafios que enfrentou ou enfrentará?

Tiago Brandão: Os desafios são, primeiro, os inerentes a um projeto desta natureza e, depois, aqueles que decorrem de ser uma história recente. Em termos práticos, temos os relacionados à organização do arquivo, ainda em fase de se converter de arquivo temporário a arquivo permanente. Essa situação levou a despender tempo assinalável filtrando documentação. Mas essa triagem é importante e permitirá estabelecer os principais marcos, em termos das datas dos principais convênios, reuniões do Conselho Deliberativo, etc. Este desafio de encontrar os documentos relevantes, penso, tem vindo a ser superado… Agora segue-se a parte porventura mais interessante, de cotejamento das informações, de muita leitura e, por fim, a escrita! Como se vê, o ofício da história também tem ‘a sua ciência’! [risos]

Fiocruz Paraná: Por se tratar de uma existência recente, o trabalho que desenvolve aqui no ICC é diferente de outros que já realizou?

Tiago Brandão: Não é a primeira vez que escrevo sobre um período recente, mas em termos de condução de um projeto, tem aí uma especificidade. Sobretudo num passado não muito distante, os historiadores tinham de fato algumas reservas em escrever uma história tão recente. Alegava-se que não havia distanciamento. Eu pessoalmente, embora possa reconhecer desafios, entendo que a escrita da história deve praticar-se em diálogo com outras áreas disciplinares e sempre atenta aos problemas dos nossos dias… Como diria Jacques Le Goff (1924-2014), um medievalista (imagine-se!) de referência da historiografia francesa, há que “compreender o presente através do passado” e, correlativamente, “compreender o passado através do presente”, uma dialética que de fato tem sido insuficientemente compreendida e explorada pelos meus colegas historiadores. Tanto mais que, a história do presente, como se diz, é já hoje em dia um ramo consagrado da historiografia.

O próprio fato de ser um período bem próximo abre perspetivas, a disponibilidade de informação é enorme e a possibilidade de cruzarmos temas históricos com temas de nossa atualidade, creio que será um diferencial instigante. Mesmo em termos de metodologias, o fato de podermos contar com a presença dos seus protagonistas dá-nos a oportunidade de podermos conduzir uma componente de história oral, algo que vai enriquecer este projeto sob muitos aspetos, não apenas históricos, mas em termos quase sociológicos, dir-se-ia, sob o prisma da própria comunicação pública da ciência brasileira, dando assim a conhecer à sociedade a perspetiva de seus cientistas em diversos assuntos importantes, desde a conformação de suas agendas de pesquisa à forma como olham as relações da Ciência e da Tecnologia com a Sociedade, os desafios da saúde e da governança pública, etc., etc.

Fiocruz Paraná: Além da publicação, sabemos que o projeto trará outras contribuições para o Instituto. Pode falar sobre a importância disso?

Tiago Brandão: Sim, a escrita de um Livro será o principal produto desta iniciativa. Mas é verdade que, desde o início, dimensionamos o projeto de forma a termos outros produtos associados. O principal, creio eu, será a base de dados atrelada a um repositório digital. Esse repositório incluirá uma classificação temática de documentos relevantes, bem como uma catalogação das fotografias do acervo de imagens. Acredito que esses dois produtos serão de extrema utilidade para depois organizarmos e programarmos outros eventos comemorativos. Temos ainda a questão do arquivo e a sua valorização, que devem ser encarados como uma responsabilidade institucional pela direção do ICC. Neste ponto, acreditamos que será um trabalho que poderá depois, inclusive, servir de base não apenas para a comunidade dos historiadores da ciência, mas para outros estudos, e sobretudo como ponto de partida para diversas iniciativas.

Outro ponto interessante é a oportunidade de aprofundar o olhar histórico, preservando a memória, num momento em que se observa já uma mudança das gerações no comando, digamos assim… É aliás de suma importância que as novas gerações entendam bem a importância de uma entidade como o ICC, no contexto brasileiro e paranaense, e a relevância e o papel de uma Fiocruz no plano nacional e internacional, e que possam assim defender com ‘conhecimento de causa’ a missão e os valores que estão hoje sendo objeto de um velado cinismo, de natureza político-ideológica, quer relativamente a um modelo que tem dado frutos, ou quer no que se relaciona com a própria visão de sociedade que queremos para os nossos filhos e netos.

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