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18/06/2020

Quando as doenças viram números: as estatísticas da Covid-19

Thayane Lopes Oliveira*


A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou, no dia 11 de março de 2020, a Covid-19 como uma pandemia. A referida declaração significa que a doença atingiu a disseminação mundial, culminando em um número expressivo de países e pessoas com transmissão sustentada. Isso significa que os casos não são mais (apenas) importados (pessoas que viajaram para países nos quais a transmissão se iniciou e que voltaram aos seus locais de origem contaminadas), mas se configuram por transmissão local - de pessoa a pessoa.

A primeira menção sobre a nova doença foi feita pela China, em 31 de dezembro de 2019, com relatos de casos de um novo tipo de pneumonia de origem ainda desconhecida. Do primeiro registro ao momento da caracterização como pandemia, foram confirmados 118 mil casos, atingindo mais de 114 países e resultando em 4,291 mortes. Como salientado por Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, a elevação da Covid-19 ao status de pandemia e a divulgação desses números altíssimos não tiveram como objetivo criar pânico ou fazer com que os países desistissem da luta contra o vírus. A caracterização de uma doença como pandêmica estabelece um estágio de atenção, a partir do qual países e governantes podem criar mecanismos de proteção para suas populações, além de instituir cooperação internacional com a finalidade de coordenar esforços e aumentar a eficácia das medidas de controle da doença.

Números de casos e mortalidade na Covid-19 tem como finalidade promover a transparência quanto à gravidade da situação mundialmente, assim como contribuir para o desenvolvimento de medidas que respondam de forma efetiva ao problema, função que foi preconizada pela OMS desde a sua fundação oficial, em 1948. De acordo com o documento do Comitê Técnico de Preparação da agência, dentre as funções da OMS, estão o papel de autoridade sobre assuntos de saúde internacional e a manutenção de serviços de estatística e epidemiologia. Esses últimos devem servir para auxiliar os governos em situações de crise sanitária, tal como se configura a pandemia do novo coronavírus.

O primeiro caso de Covid-19 no Brasil foi confirmado pelo ministro da Saúde em 26 de fevereiro de 2020. A partir daquele momento, passamos a acompanhar a ascensão dos números diariamente na TV, nos jornais e nas redes sociais. Quase quatro meses depois, em 14 de junho, os dados mostram um cenário bem preocupante, com os casos confirmados ultrapassando o número de 867 mil e mais de 43 mil mortes em todo o país. No contexto da pandemia, as estatísticas de transmissão, casos confirmados, casos curados e óbitos se tornaram parte dessa nova realidade transformada pelo vírus. Assim, é preciso entender o que esses números nos dizem, principalmente quando lidamos constantemente com o risco que a subnotificação representa.

O Brasil, de acordo com os dados divulgados pela Universidade de Oxford e comparados pela BBC News Brasil, é um dos países com menor índice de testagem na população. Essa constatação está relacionada à capacidade de produção dos testes, à distribuição de kits e ao processamento dos resultados. Em primeiro lugar, a aquisição de testes depende da disponibilidade desses no mercado, o que no contexto de pandemia torna-se insuficiente para a demanda. Somado a isso, esbarramos nas dificuldades para a produção nacional devido à escassez dos insumos necessários à fabricação, sendo essa uma das consequências dos sucessivos cortes orçamentários dos últimos cinco anos dirigidos às áreas de CT&I e saúde. Ainda assim, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), uma das primeiras a produzir os testes moleculares para a Covid-19 no país, ampliou sua capacidade de 58 mil testes em março para 1,2 milhão em abril, e projeta 11 milhões até o mês de setembro deste ano.

Já na distribuição dos kits para as secretarias estaduais de Saúde, alguns parâmetros são definidos, a saber: número de casos confirmados no estado, tipologia do município conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), total de trabalhadores da saúde e total de trabalhadores da segurança pública, sendo os estados responsáveis pela distribuição aos municípios.

Por último, o índice de testagem também é influenciado pela capacidade laboratorial de processamento dos resultados. A Rede Nacional de Laboratórios (Lacens, Instituto Evandro Chagas e unidades da Fiocruz) possui capacidade aproximada de 10 mil testes diários de acordo com os dados coletados até 6 de maio de 2020, conforme consta do Boletim Epidemiológico Especial COE-Covid-19, atualizado em 18 do mesmo mês. Essa quantidade está aquém da necessária para o cenário de transmissão da doença no país e causa o represamento dos resultados que impactam diretamente nos números de que temos conhecimento.

Levando em consideração todos esses fatores, qual é a importância do índice de testagem do país? Esse índice é medido a partir da quantidade de testes realizados e dividido por milhão de habitantes. Considerando a nossa população de 211 milhões de habitantes, até o dia 14 de junho, foram realizados 1.499.041 testes, o que nos dá uma proporção de 7,055 testes por milhão. Se comparados aos dados dos países mais divulgados pela mídia, EUA (74,869), Espanha (95,507) e Itália (76,419), temos um índice de testagem bastante inferior e preocupante.

Os números de testagem realizados são importantes também para estabelecer a taxa de letalidade da doença. A baixa testagem e, por consequência, a baixa notificação, quando confrontadas com a taxa de mortalidade, elevam o índice de letalidade da doença. Vale salientar a diferença entre as taxas de letalidade e mortalidade. A taxa de letalidade é calculada a partir do número de mortes pela doença e o número total de contaminados. Já a taxa de mortalidade se refere ao número de óbitos pela doença em referência ao total da população. A testagem massiva, recomendação da OMS, consiste na tentativa de aproximar-se do número real de pessoas infectadas no país, sendo essa uma informação importante para adoção de medidas de controle do vírus. Quanto mais testes, mais é possível identificar casos, inclusive em pessoas assintomáticas, e impedir a transmissão. Os mesmos dados apontam que, em países com maior número de testes, a taxa de mortalidade tende a cair, visto que as medidas mais rigorosas são tomadas em tempo hábil, sendo a Coreia do Sul o maior exemplo dessa relação entre testes massivos e controle da transmissão.

O ponto central desse texto é a utilidade e a autoridade das estatísticas para o conhecimento de distintas realidades e também, nesse caso, para evidenciar o perigo real que a doença representa. Outro ponto importante, e ainda mais fundamental para os especialistas, é que os números possibilitam o direcionamento de ações governamentais para conter a evolução da pandemia.

O fenômeno das estatísticas surgiu a partir do século 19, momento a partir do qual os números ganharam o status de ferramenta de objetividade e imparcialidade para o estudo e análise de questões da vida pública. Objetividade porque a linguagem numérica facilita a leitura de questões complexas; imparcial porque, como defendido por seus idealizadores, os números seriam neutros e não obedeceriam a interesses individuais. Autores como Ian Hacking, Theodore Porter e Michel Foucault localizam a emergência da quantificação na primeira metade do século 19. Naquele momento, o uso das estatísticas ganhou impulso a partir de sua aplicação em questões biológicas e sociais, visto que serviram para calcular taxas de nascimento, natalidade, adoecimento, criminalidade, tributação, dentre outros. A ferramenta estatística teve papel fundamental na consolidação e atuação dos Estados nacionais, pois deram aos governantes o conhecimento necessário para o exercício do poder sobre seus territórios e populações.

Por esse motivo, as estatísticas constituem um saber-poder, conhecimento sobre realidades distantes e desconhecidas, sendo capaz de permitir a ação sobre elas. Como uma metodologia científica para representação e interpretação de questões sociais, as estatísticas funcionam como tecnologias de governo, ao passo que permitem a elaboração de políticas públicas e intervenções em situações problemáticas, tal como a pandemia do novo coronavírus.

No Brasil, a primeira instituição criada nesse sentido foi a Diretoria Geral de Estatísticas (DGE), em 1871, responsável pela realização do censo nacional. De acordo com Nelson Senra, é possível traçar uma linha de continuidade, embora com modificações em aspectos administrativos e funcionais, entre a criação da DGE até a implantação do IBGE em 1938. Para o autor, apesar da mudança de posição dentro do organograma do Estado brasileiro e da complexidade quanto às funções realizadas, percebe-se que essas instituições possuíam uma mesma função primária – a realização do censo –, à qual novas atribuições foram se agregando à medida que os dados estatísticos se tornaram indispensáveis para a administração do Estado.

O IBGE representa a profissionalização e a institucionalização da atividade estatística no país. Constitui-se como o principal órgão responsável por coletar, analisar e publicizar informações geográficas e estatísticas, além de prover tais dados para demais instituições. Por essa atuação, conquistou autonomia institucional para a realização de suas atividades, embora, em 2019, tenha recebido o anúncio do corte de verbas destinadas à realização do censo de 2020. Especialistas da área lamentaram um possível “apagão estatístico” como consequência da diminuição de desempenho do órgão. É preciso salientar que muitos problemas sociais só se tornam conhecidos quando há números que apontem para sua existência e impacto na população, e nisso reside, portanto, uma das justificativas de existência do órgão.

Na mesma direção, temos a reportagem publicada em 2 de maio de 2020 no jornal O Globo, na qual especialistas em saúde pública afirmaram temer um “apagão” de dados sobre a Covid-19 no Brasil. Esses temores aumentaram recentemente, na primeira semana de junho, quando um gestor, que ainda assumiria a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde, divulgou a intenção de modificar a metodologia de contagem e divulgação do número diário de mortos pela doença, sob o argumento de que estes estariam inflados e manipulados pelas secretarias estaduais. Até então, divulgavam-se os números de óbitos notificados no dia e estes não eram vinculados à data de falecimento do paciente. A seguir a nova metodologia, os óbitos seriam contabilizados apenas no dia de sua ocorrência, e os registros atrasados (por demora no resultado do exame) não seriam mais incluídos no boletim diário. A decisão foi vista negativamente dentro e fora do país. Dificultaria a análise de pesquisadores e gestores sobre o desenvolvimento da doença, e das ações a serem tomadas, além de provocar desinformação na sociedade sobre o estágio da pandemia. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) emitiu nota repudiando as acusações de manipulação dos dados nos estados e criou um site paralelo para informar sobre os números da doença segundo a metodologia vigente desde o início da pandemia. O gestor que assumiria a SCTIE desistiu do cargo.

Outra mudança controversa ocorreu na forma de divulgar os dados no portal oficial Coronavírus Brasil. O número acumulado de casos confirmados e mortes foi substituído pelo número diário, além da supressão das curvas de evolução da doença. A mudança na divulgação criou novas dificuldades no acompanhamento dos números no país. Aliado a isso, o horário de divulgação do boletim diário foi alterado. Antes acontecendo às 17h, 18h ou 20h, passou a ser divulgado após as 22h. Em reação a essa medida, os principais veículos de impressa formaram um consórcio para coletar informações diretamente das secretarias estaduais de Saúde e divulgar os resultados de forma independente. O impasse na metodologia de contabilização e divulgação dos números da Covid-19 não está solucionado, visto que o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que os canais oficiais voltassem a divulgar os números consolidados da doença. Os números diários voltaram a ser informados às 18h.

O cenário de indefinição e a falta de sincronia entre os entes federativos na publicação das estatísticas configura um empecilho para dimensionar o tamanho da pandemia no país. A limitação das informações diminui a eficácia de análises que poderiam colaborar na construção de políticas públicas de combate ao vírus. É a partir do conhecimento dos números que os governos podem adotar medidas para prevenção e controle da transmissão, como o isolamento social, até o momento a medida mais eficaz para frear o ritmo de propagação do vírus.

Tomemos como exemplo os levantamentos e projeções realizados pelo Imperial College de Londres, que indicam que o Brasil possui a maior taxa de transmissão do mundo, com uma pessoa infectada podendo transmitir para até 3 outras pessoas. Esse estudo trata-se de uma modelagem matemática com aplicação epidemiológica que ganha relevância quando se torna necessário estimar a extensão de uma doença em espaço e tempo determinados. A partir de variáveis de pessoas suscetíveis, infectadas e removidas (recuperados ou óbitos) estima-se a taxa de reprodução do vírus. A atualização estatística é fundamental para alimentar esse modelo, que cria estimativas de propagação. Consequência importante dessa pesquisa foi a adoção do isolamento social nos EUA e no Reino Unido, para frear a velocidade de transmissão da Covid-19. Nessas modelagens matemáticas, que criam representações da realidade, estão sendo baseadas as discussões sobre a retomada das atividades econômicas ou uma possível volta à “normalidade” social.

Vale lembrar que esse modelo de previsão matemática foi utilizado em outros contextos de epidemias. Atribui-se o pioneirismo a Daniel Bernouilli ao comprovar a eficácia da vacinação da varíola para salvar vidas no século 18, chegando até situações mais recentes, como os casos de febre amarela, dengue, zika e síndrome respiratória aguda grave (SRAG), que tem no Info Gripe – uma plataforma de monitoramento oriunda da iniciativa de pesquisadores de departamentos da Fiocruz, Fundação Getulio Vargas (FGV) e Ministério da Saúde (MS) - um importante exemplo de como o uso das modelagens matemáticas e estatísticas atuam no conhecimento sobre a realidade de uma doença na sociedade.

Foi também através dos dados do Info Gripe que se constatou o crescimento de notificações de SRAG a partir de fevereiro deste ano, sugerindo que esses casos corresponderiam a situações não diagnosticadas de Covid-19, e não a mera coincidência de duas doenças diferentes coexistindo no mesmo período. Com os avanços tecnológicos e a utilização da computação científica, o processamento desses dados ganha velocidade importante para apresentar respostas e evidências científicas que auxiliem na resolução de problemas no campo da saúde pública.

No entanto, não são apenas os dados de transmissão e óbito que merecem atenção no contexto de pandemia que vivemos. A realidade trazida pelo vírus implica o conhecimento da infraestrutura necessária para responder de forma ágil e eficaz, por exemplo, sobre a rede de assistência médico-hospitalar disponível nos estados, nas capitais e demais municípios. No contexto específico do Brasil, a distribuição do auxílio emergencial, determinado pelo governo para socorrer as pessoas em situação de vulnerabilidade, evidenciou também que a distribuição de agências e postos bancários é insuficiente e não atende toda a população, fazendo com que muitos cidadãos se desloquem dos seus municípios em busca de atendimento em outras localidades, como demonstrado pelo Atlas Digital sobre a Covid-19 no Ceará, iniciativa dos professores do Instituto Federal do Ceará, Campus Iguatu. O projeto tem como objetivo mapear informações sociodemográficas, de saúde e hospitalares, indicadores de vulnerabilidade e mobilidade obtidas a partir de dados do IBGE, tudo isso unido às estatísticas de transmissão e óbitos do novo coronavírus como forma de avaliar o impacto da pandemia nos mais diversos aspectos da sociedade.

Sabemos a importância do cruzamento desses dados, pois se idade e doenças preexistentes configuram fatores de risco, no Brasil devemos acrescentar as desigualdades socioeconômicas que dificultam o acesso ao diagnóstico e tratamento de doenças, inclusive durante a pandemia. Trabalhos mais recentes têm apontado para as diferenças nas taxas de letalidade entre periferias e áreas nobres. O acesso e a qualidade dos serviços de saúde são elementos cruciais nessas diferenças.

Na cidade do Rio de Janeiro, o zoneamento da cidade também representa a maior brutalidade de ação do vírus. A letalidade de 30,8% do Complexo da Maré, localizado na zona Norte, contrasta com o índice de 2,4% do Leblon, na zona Sul. A Covid-19 chegou ao Brasil através dos ricos e da classe média que fazem viagens ao exterior, mas pesquisadores são unânimes ao dizer que a tragédia acontecerá (e já acontece) nas periferias do país.

Diante desse cenário, o que podem nos dizer as estatísticas da Covid-19? É importante perceber que a extensão territorial, o tamanho da população e as desigualdades socioeconômicas colocam o Brasil em uma situação diferente no combate à pandemia se comparado à realidade dos países europeus. As estatísticas, nesse sentido, cumprem a função de tornar conhecidas as várias faces locais da pandemia, e possibilitam a atuação de estados e municípios de forma eficiente e rápida na distribuição de recursos e no socorro à população. É por esse aspecto que pesquisadores cobram transparência na divulgação dos dados sobre a doença no país para que a resposta dada seja compatível com a ameaça que o novo coronavírus representa na sociedade.

*Thayane Lopes Oliveira é doutoranda no Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE (Campus Iguatu)

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