Início do conteúdo

18/06/2020

Troco uma máscara por alimento: fome e pobreza na Covid-19

Rômulo de Paula Andrade*


Recentemente, uma foto chamou a atenção nos noticiários. Nela, uma criança levantava um cartaz onde estava escrito: Troco uma máscara por alimento, a imagem divulgada no Jornal Extra em 14/5/2020 era forte. De súbito, despertou diversos debates sobre as (im)possibilidades de distanciamento social e quarentena de quem, aos olhos do Estado, não existe: os informais, os desempregados, os desalentados. Ou seja, as políticas voltadas para esse estrato da população são ineficazes. Existem diversas explicações para o baixo grau de distanciamento social em comparação a outros países que estão passando pela epidemia da Covid-19. Essas análises, no geral, fazem referência às (más) relações entre os entes federativos no Brasil. Mas acredito que é possível apontar mais uma variável nesta questão. 

De acordo com a última pesquisa realizada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), divulgada em 15 de maio de 2020, o Brasil conta com uma taxa de informalidade de 40% de sua população ativa. Ou seja, na maior parte dos casos, estas pessoas não possuem condições de deixar de trabalhar e nem de ficar em casa. Este não é só um problema brasileiro. O Peru, cujo presidente recebeu a aprovação de 80% de seus habitantes em relação ao combate ao novo coronavírus, passa por questões semelhantes ao Brasil na dificuldade de manter um alto índice de isolamento social. De acordo com a BBC, um dos pontos que impede o êxito desta política é justamente o alto grau de informalidade da população. Segundo Hugo Ñopo, pesquisador do Grupo de Análisis del Desarollo (Grade), “Cerca de 71% da população ativa no Peru vive da economia informal ou trabalha em com atividades em que obtém sua renda dia a dia”. Uma instigante reportagem feita pelo RJ TV em São Gonçalo, cidade com mais de um milhão de habitantes, também demonstra isso. O calçadão de Alcântara é o principal ponto comercial do município da região metropolitana do Rio de Janeiro e, à exemplo de outras praças, continuou funcionando normalmente durante a escalada da curva da pandemia. A entrevista com o ambulante mostra a gravidade da situação:

Repórter: O senhor não está preocupado com a pandemia?
Ambulante: 50% sim, 50% não. Eu desejo que abra esse comércio todinho, mas por outro lado, tem a doença....
Repórter: Mas o senhor não acha perigoso tanta gente na rua?
Ambulante: Os cientistas dizem que é perigoso....mas fazer o que? Eu, por exemplo, não tenho...não sou aposentado, não tenho renda de nada...eu vou ficar em casa? Vou morrer de fome?

Existem diversas explicações para o baixo grau de distanciamento social em comparação a outros países que estão passando pela epidemia da Covid-19. Essas análises, no geral, fazem referência às (más) relações entre os entes federativos no Brasil. 

A menina que segurava o cartaz na foto também é um retrato desse contexto de informalidade. Ana Júlia é filha de Silvana Costa, e irmã de mais três meninos. Aluna do ensino fundamental, não está tendo aula, o que possibilitou colaborar com o orçamento doméstico. Sua mãe perdeu o trabalho de empregada doméstica e não sabia mais o que fazer para sustentar os quatro filhos, pois mesmo o auxílio emergencial de R$600 não foi o suficiente: "Fiquei com receio do que as pessoas pensariam. Eu não queria que meus filhos estivessem aqui comigo. Eu sempre trabalhei para levar o alimento para dentro de casa e nunca levei eles. Nunca passou pela minha cabeça que eles iriam precisar vir comigo para vender (no sinal)". 

Diante dessas histórias, não é difícil compreender que a fragilidade social diante da pandemia é um dos fatores determinantes para as baixas taxas de distanciamento social. Segundo o Mapa Brasileiro da Covid-19, o Rio de Janeiro tem um baixíssimo índice de isolamento, variando abaixo dos 50%, considerado insuficiente, pelos especialistas, para conter o colapso no sistema de saúde.

As histórias contadas acima trazem um fator em comum: o medo da fome. Longe de serem depoimentos de exceção, as falas representam uma pequena amostragem de um temor comum às populações vulneráveis neste período de pandemia e, na prática, de desemprego e impedimento ao trabalho. A Rede de Pesquisas Solidárias, que conta com investigadores de diversas áreas de conhecimento e múltiplas instituições, produziu a nota técnica Fome, desemprego, desinformação e sofrimento psicológico estimulam a violência e a desesperança em comunidades vulneráveis de seis regiões metropolitanas brasileiras. As principais conclusões foram as seguintes:

- A fome é o drama mais crítico enfrentado por famílias carentes por conta da pandemia. Iniciativas de socorro se multiplicam, mas são insuficientes, incipientes e nem sempre coordenadas. 

- O desemprego, redução do salário e ausência de renda atingem as famílias e dificultam o acesso a itens de proteção, como as máscaras. O endividamento e a inadimplência agravam ainda mais suas condições de vulnerabilidade.

A fome ressurge como a principal consequência das crises decorrentes da pandemia para as populações mais carentes. Outro dos temores trazido pelos líderes comunitários é que, em decorrência da escassez e da desorganização da distribuição de alimentos, filas e disputas por comida comecem a acontecer. 

A fome é um fantasma recorrente na história do Brasil. Em especial na história recente. Por ser um assunto que traz à tona questões sociais e desigualdades muito profundas e antigas, é, decerto, um assunto incômodo. Desde as primeiras lutas pela redemocratização brasileira, a forma de abordar o assunto por parte das políticas públicas se alterou de forma significativa, sendo, em muitos casos, provocada pelos movimentos sociais que daquele momento participaram, como o ‘Movimento Custo de Vida e Contra a Carestia’ e as ‘Marchas da Panela Vazia’, criados no final da década de 1970 frente aos efeitos da crise do milagre econômico brasileiro. Na década de 1980, foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito, instaurada em 1981, para investigar as causas do avanço da fome entre a população brasileira; mesmo ano da criação do Instituto Brasileiro de Análises Econômicas e Sociais, liderado pelo até então exilado Herbert de Souza. A ótima tese de doutorado de Daniel Alvim, defendida em 2016 na UFF, mostra como os saques populares ocorridos na década de 1980, antes e durante o período da redemocratização, resultaram em mobilizações populares que permitiram que a população brasileira reivindicasse, ao mesmo tempo, a luta contra a fome e a redemocratização nacional. Dois exemplos destacados no trabalho são a Campanha da Fraternidade da CNBB, chamada Pão para quem tem fome, e os debates envolvendo o assunto na Assembleia Nacional Constituinte. O sucesso da Ação da Cidadania Contra a Fome, liderada pelo já citado Herbert de Souza, o Betinho, no início dos anos 1990, é uma prova da mobilização da sociedade civil em torno do assunto.

As políticas públicas dos anos 1980 para cá, em resposta a essas demandas, variaram conforme a orientação dos respectivos governos:  de um planejamento mais centralizado a um mais participativo, caminhando da centralização por parte do Estado até a transferência dessas atribuições às Organizações Não Governamentais, e, por fim, com programas de distribuição de alimentos ou tickets.  Ainda assim, eram comuns, para quem cresceu nos anos 1990, em meio a reportagens que comemoravam novos hábitos de consumo decorrentes da estabilidade econômica do Real, notícias sobre crises de fome nas diversas regiões brasileiras. Um exemplo foi a série de reportagens Fome no Brasil, produzidas pelo Jornal Nacional em 2001, que expuseram aos olhos do país o drama vivido por milhões de brasileiros. 

Um marco civilizacional desta trajetória é, sem sombra de dúvidas, o Relatório de Insegurança Alimentar de 2014 da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, que tirou o Brasil do “Mapa da Fome”. Este levantamento avaliava o desempenho dos países quanto às metas do Milênio e da Conferência Mundial de Alimentação, no que diz respeito ao Indicador de Prevalência de Subalimentação. Considerando dois períodos distintos para analisar a subalimentação (1990-2014/2002-2013), a agência destacou que a população nesta situação tinha sido reduzida em 82%.  Mesmo este fato não ficaria incólume ao conturbado contexto político que tem no ano de 2014 um de seus marcos iniciais. Durante o mesmo mês da divulgação do relatório, também ocorria uma acirrada campanha eleitoral, entre a então presidenta, Dilma Roussef, e o candidato da oposição, Aécio Neves. Iniciando uma forte polarização que se intensificaria nos anos seguintes, a notícia foi interpretada de forma diferente por fontes pró-governo e por opositores. Um exemplo foi a coluna do articulista Reinado Azevedo, desacreditando da notícia, pelo fato de o então diretor da FAO, José Graziano da Silva, ter sido ministro do governo Lula e, consequentemente, aliado do Partido dos Trabalhadores da então presidente Dilma.  Em outra mão, o periódico pró-governo Pragmatismo Político ressaltava que a notícia estava "escondida" dos principais meios de comunicação e reclamava da pouca cobertura dada a esta "conquista histórica".  

Importante ressaltar que, independente do posicionamento político do diretor da FAO, a saída do Brasil do Mapa da Fome foi sim, uma grande conquista, referendada por estatísticas e pesquisas de agências internacionais. Entre as razões deste acontecimento, destacam-se: políticas de caráter macroeconômico, como o quase pleno emprego do período, formalização do trabalho, correção do salário mínimo acima da inflação e programas de transferência de renda, como o Bolsa Família.  

Passaram-se seis anos desde este documento. Basta uma breve espiada em qualquer jornal para compreender o porquê de diversos pesquisadores e da própria FAO apontarem o Brasil como um potencial candidato a voltar ao mapa da fome. Entre as razões estão: aumento do desemprego, da informalidade, corte de programas de transferência de renda, precarização da estrutura pública de combate à insegurança alimentar e congelamento de gastos públicos por meio de emendas constitucionais. A fome é relacionada à extrema pobreza, muito mais do que a uma questão meramente nutritiva. Josué de Castro, autor de Geografia da Fome, uma das obras fundamentais para se compreender a emergência e história da fome no país, assim escreveu sobre suas motivações para a escrita do livro no prefácio à décima edição, em 1960: "Ao retratarmos a fome no Brasil estávamos a evidenciar o seu subdesenvolvimento econômico, porque fome e subdesenvolvimento são uma mesma coisa. Foi esta conjuntura econômico-social com todas suas trágicas consequências que inspirou este ensaio". 

De acordo com a OMS, a saúde é "um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade". A fome é, sem sombra de dúvidas, uma das situações sociais que mais mobiliza este conceito. De acordo com as projeções do Programa de Alimentação das Nações Unidas (WFP), o impacto socioeconômico da pandemia do Covid-19 na América Latina e no Caribe pode deixar cerca de 14 milhões de pessoas em situação de fome neste ano; um acréscimo de mais de 10 milhões de pessoas em relação à medição anterior. De acordo com os técnicos da WFP, isso ocorreria por conta da vulnerabilidade e do crescente número do trabalho informal na região. 

Uma das áreas mais profícuas do campo historiográfico atualmente é a história do tempo presente, que, para além do estudo de uma temporalidade recente, aborda as permanências de experiências históricas passadas na contemporaneidade. A fome, sem dúvida, é uma delas, e, por mais que tenha sido, por breves momentos, considerada superada na trajetória brasileira, mostra-se, em especial nos momentos de crise econômica, um pesado traço de um passado que não passa.

Pensata 1: A foto de Ana Júlia e sua família, feita por Márcia Foleto, lembra o caráter de denúncia de uma das fotografias mais famosas do século 20: Migrant Mother, de Dorothea Lange. A fotografia é fruto do trabalho da agência responsável por expor para o país as consequências da crise de 1929, a Farm Security Administration. Como forma de subsidiar o programa de recuperação do país, o New Deal, o  então  presidente  Franklin  Delano  Roosevelt  contratou fotógrafos para traçar um quadro do país. As câmeras possibilitaram estabelecer um balanço da situação de pobreza das pessoas. A mulher da foto, Florence Owens Thompson, estava viajando pela estrada até Watsonville, na California, onde esperava encontrar trabalho nos campos de alface de Pajaro Valley. O carro, em que Florence, o marido e os filhos viajavam, quebrou, e eles tiveram que parar em um acampamento, onde mais de 3000 pessoas tinham a esperança de, assim como eles, encontrar emprego nas plantações. Mas as chuvas e o tempo frio deixaram a todos sem emprego. Se esse foi um microcosmo do que foi a crise de 1929 para as populações rurais, a história de Ana Júlia é um microcosmo do impacto da Covid-19 nas famílias mais pobres e dependentes da informalidade no país. 

Pensata 2: James Vernon, historiador britânico, escreveu um instigante livro chamado Hunger – A Modern History, no qual mapeia a história da fome na Inglaterra desde os tempos do Império Britânico, nas grandes navegações, até os tempos recentes. De acordo com ele, a fome era considerada uma condição natural, inevitável ou necessária, fora do controle humano. A situação alimentar das pessoas era vista como algo bom e necessário: ensinaria aos preguiçosos e indigentes a disciplina moral do trabalho. Ensinaria também às pessoas como adentrar a modernidade enquanto indivíduos capazes de competir em uma economia de mercado, conseguindo ser autossuficientes. A fome era vista então como uma boa punição aos pobres, cujo número crescia aos olhos das elites das cidades, cada vez mais invadidas pelos antigos camponeses. 

Felizmente, os tempos são outros. Ou não?

*Rômulo de Paula Andrade pesquisador do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz

Voltar ao topo Voltar