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06/11/2017

Radis de novembro destaca saúde bucal e cidadania

Luiz Felipe Stevanim (Revista Radis)


Sueli não contém o sorriso, ainda tímido. Ela veio caminhando a pé até o postinho de saúde, carregando a bolsa pesada de roupas - que leva, de um lado a outro, como vendedora ambulante. Senta na cadeira da dentista, com uma alegria incontida. Naquela tarde abafada de agosto, em Campinas, ela confere se está tudo certo com a prótese dentária, que começou a usar no dia anterior. Enquanto conversa e narra um pouco da mudança em sua rotina, ela ainda leva a mão discretamente sobre a boca, em um gesto automático de quem durante anos se acostumou a esconder o sorriso, por vergonha. “As pessoas não vão mais correr de mim”, conta, ao se referir aos olhares e reações que faziam com que ela se sentisse menos gente. O sorriso desabrocha espontâneo no rosto da mulher de 37 anos.

O gesto simples de sorrir havia deixado de ser natural para Sueli Lopes de Oliveira, talvez ainda na adolescência. Moradora de uma área pobre do bairro Jardim Santa Genebra, na região leste de Campinas (SP), ela teve um quadro de desnutrição e deficiência de cálcio quando criança, o que contribuiu para a perda dentária. Antes da prótese, ela contava apenas com sete dentes, o que gerava problemas em seu trabalho de vendedora, que depende da expressão facial. “Sofri muito preconceito. Uma vez passou um programa de TV dizendo que quem não tinha dente era usuário de drogas”, relembra. Os conhecidos e amigos do postinho se juntam para adquirir algumas peças de roupa para que ela realize outro sonho: comprar uma meia de compressão, essencial para que possa caminhar e viver melhor com a úlcera varicosa (ferida na pele devido à má circulação). Com duas palavras, resume o que sentia desde que reconstruiu seu sorriso: “Maior alegria”.

A história de Sueli é retrato de um dos problemas mais marcantes da saúde bucal no Brasil: a perda dos dentes. Também chamada de edentulismo ou mutilação dentária, essa ocorrência aponta para a necessidade de se pensar a saúde bucal pelo ponto de vista da integralidade - da prevenção e promoção até os cuidados de reabilitação. O contato diário com essa realidade aguçou o olhar da dentista responsável pelo serviço de prótese que fez a reabilitação de Sueli, no Centro de Saúde Dr. Luiz de Tella, na zona Leste de Campinas, Ana Cláudia Pimenta: além de cuidar da reconstrução do sorriso, ela passou também a colher as histórias de pessoas que perderam os dentes, ao longo da vida, e como elas lidam com essa ausência e com os preconceitos decorrentes. 

“A boca não é feita só para mastigar. A boca se abre para o mundo. Ela fala, beija, sente, sorri. Não se separa a boca do corpo”, reflete, ao enfatizar que a saúde bucal está dentro de um contexto físico, psicológico e social. Os relatos — utilizados em seu doutorado em Saúde Coletiva, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), previsto para ser concluído no fim de 2017 — ajudaram a entender como a saúde bucal é reflexo das condições de vida das pessoas. Nas chamadas “histórias patográficas”, nome que deu a esses testemunhos, Ana Cláudia não estava interessada apenas nos prontuários, mas no modo como as pessoas lidam com a perda dentária. “Em geral as histórias têm um ponto em comum: a vida dessas pessoas é recheada de lutas e revela dificuldades para ter acesso ao postinho, aos serviços de saúde”, declara.

Problema que dava ao Brasil o título de “país de banguelas”, a perda dos dentes foi encarada como uma das questões principais a serem enfrentadas pela Política Nacional de Saúde Bucal, conhecida como Brasil Sorridente, lançada em 2004, no mesmo ano em que se realizou a 3ª Conferência Nacional de Saúde Bucal. Quase 70% dos brasileiros adultos, entre 35 e 44 anos, têm necessidade de algum tipo de prótese dentária, como revelou o levantamento mais recente do perfil odontológico da população brasileira — a Pesquisa Nacional de Saúde Bucal 2010 ou Projeto SB Brasil. Por trás dessa perda, estão dificuldades para acessar os serviços de saúde e deficiências que vão desde a promoção e a prevenção até o tratamento de média e alta complexidade. “Esse levantamento confirma que o edentulismo é uma marca da desigualdade social e um grande problema no país”, afirma Ana Cláudia.

“As condições da saúde bucal e o estado dos dentes são, sem dúvida, um dos mais significativos sinais de exclusão social”, apontou o relatório final da 3ª Conferência, em 2004, que ajudou a definir os rumos da Política Nacional. Para o professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), o dentista sanitarista Paulo Capel Narvai - que foi relator geral da conferência -, as desigualdades marcam as bocas dos brasileiros. “A população acumula necessidades em saúde bucal em níveis tecnicamente insuportáveis para qualquer sistema de saúde”, reflete. Nas vozes da conferência ocorrida há 13 anos, já eram apontadas as saídas: o enfrentamento dos problemas nessa área exige mais do que profissionais competentes; requer políticas intersetoriais e ações preventivas, curativas e de reabilitação, com foco na promoção da saúde e na garantia de acesso universal.

Os exemplos mais recorrentes de ações exitosas são a fluoretação da água e a inclusão de Equipes de Saúde Bucal (ESB) na Estratégia Saúde da Família (ESF). Treze anos após a criação da Política Nacional de Saúde Bucal, avanços são percebidos, assim como desafios permanecem, como indica o balanço feito por sanitaristas ouvidos por Radis. De um lado, está a queda na presença do principal problema de saúde bucal: a cárie, especialmente em crianças até 12 anos. De outro, permanecem desigualdades regionais e a necessidade de expandir a cobertura dos serviços. “Em virtude da dívida assistencial histórica da saúde bucal, ainda estamos longe de uma cobertura plena, entretanto tivemos avanços consideráveis”, avalia o dentista e professor de Odontologia do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Angelo Roncalli. 

Para entender os desafios que atravessam o cuidado com o sorriso dos brasileiros, Radis foi também aos serviços de saúde e ouviu profissionais e usuários do SUS sobre suas histórias e necessidades. A realidade mostra que a promoção da saúde bucal tem a ver com garantia de cidadania, mas passa também por qualidade de vida e valorização da autoestima.

Sorrisos da desigualdade

“Moço, não quero tirar foto, já aviso desde já”. Depois de dar esse veredito, em um tom entre sério e bem-humorado, o ar sisudo de Domingas da Silva vai se desmanchando, à medida que ela conversa com a gente. Não somente no serviço de Odontologia, mas em todo o Centro de Saúde Dr. Luiz de Tella, ela é conhecida como uma mulher que luta por seus direitos: alguém essencial para cobrar respostas do poder público. “A Odonto estava sem luz, tinha queimado o reator. Liguei para a prefeitura e mandei avisar: se vocês não trocarem, nós, usuários, vamos nos juntar e fazer uma vaquinha”, narra, com brilho nos olhos. Vieram e trocaram.

Aos 62 anos, Domingas, moradora do bairro Costa e Silva, em Campinas, faz uso de uma prótese dentária parcial, mas precisa de outra, pois perdeu outros dentes depois que colocou a primeira. Ela é atendida por Ana Cláudia, que tira as medidas para a nova prótese. Em geral, dentro de um mês, a peça fica pronta, quando Domingas será chamada novamente para fazer o teste. Ela conta um pouco de como a perda dentária interfere em sua vida. “Afeta tudo, a autoestima, a maneira de você se alimentar. Coloco dois comprimidos na boca; quando vejo, um vazou no buraco do dente e foi para o chão”, narra, referindo-se às dificuldades. “Mastigar não é possível, então você engole a comida. É horrível você jantar na casa de alguém, porque na sua casa, pelo menos você se vira”. Por causa da depressão, Domingas chegou a fumar seis maços de cigarro por dia; além disso, convive com a esofagite, que causa refluxos durante a noite, fatores que aceleram a perda. “Os dentes são o ‘cartão de visitas’. É uma coisa que não dá para viver sem”, pontua, afirmando a expectativa de que possa ter mais qualidade de vida com a nova prótese.

Do mesmo modo que Domingas e Sueli, pessoas que perdem os dentes têm que lidar com sentimentos como inferioridade, insegurança e vergonha, o que os leva à sensação de exclusão diante da sociedade, conta Ana Cláudia. “Essas pessoas vão ficando sem os dentes e existe uma cobrança social que afeta os relacionamentos, o emprego e a sociabilidade”, explica. Entre as histórias de mutilação dentária que reuniu para a pesquisa, ela cita casos que marcam a vida de pessoas de todas as idades: uma criança que sofreu um atropelamento e passou a ser chamada de “banguelão” pelos colegas de sala; pessoas que encontravam dificuldades para se colocar no mercado de trabalho; e até rejeição no casamento. “Ainda na adolescência, as pessoas começam a ser mutiladas pela falta de recurso: recurso financeiro para o tratamento particular; recurso público, porque o serviço de saúde não dá condições para tratar alguns tipos de problema”, comenta.

Ela também explica o “ciclo vicioso” que coloca o edentulismo como um grave problema de saúde pública. Até a criação do Brasil Sorridente, em 2004, o SUS não oferecia serviço de prótese, a não ser como iniciativa isolada de alguns poucos municípios. Obturações simples eram feitas em postos de saúde; mas para dentes infeccionados, que exigiam tratamento de canal, só havia uma sentença: arrancar. “Se tem que fazer um canal, o posto não faz, a pessoa não pode fazer particular, então se opta pela extração. Ou ela fica com dor ou ela tira o dente. Então ela escolhe tirar”, relata. Com isso, criou-se o que Ana Cláudia chama de “cultura da mutilação”, com uma consequência grave: uma parcela significativa da população passou a necessitar de prótese dentária.

Continue a leitura da reportagem no site da revista Radis

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