27/06/2024
Luiz Felipe Stevanim (Revista Radis)
A vó, filha e neta. Três gerações de mulheres indígenas viviam em uma casa pobre nas imediações da Estação Ferroviária da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, desterradas de sua comunidade de origem, expulsas pela violência colonizadora contra as populações originárias. Migrante, analfabeta, paraibana e indígena, a avó, Maria de Lourdes, vendia bananas na feira, acompanhada pela neta, que a tudo observava.
Em silêncio, a pequena Eliane aprendeu, desde menina, a absorver todas essas vivências e a guardá-las em sua memória — e as lembranças da pobreza, da exclusão e da luta das mulheres de sua família se transformaram em matéria-prima para prosa e poesia. Suas palavras originárias foram espalhadas pelo vento e, de suas mãos, surgiu uma literatura que se tornou arma e voz para a luta indígena no Brasil, em sintonia com a defesa da Mãe Terra.
Hoje a menina é Eliane Potiguara, nascida em 1950, escritora, poeta, professora, ativista indígena e contadora de histórias, como ela mesma costuma se definir. E foi com sua avó que ela aprendeu a arte da contação de vida: “Vovó me contava coisas, a gente se sentava no final da tarde, todos os dias, eu e meu irmão, ela contava muitas histórias”.
Eliane é uma pioneira na luta das mulheres originárias e na organização do movimento indígena brasileiro, desde os anos da ditadura militar até a redemocratização, ao lado de nomes como Ailton Krenak, Álvaro Tukano e Paulo Bororo. Autora de dez livros, entre eles o clássico Metade Cara, Metade Máscara (Grumin Edições), foi a primeira mulher originária a se destacar na literatura.
Em um momento em que três mulheres indígenas assumem posições de liderança na política nacional (a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara; a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana; e a deputada federal Célia Xakriabá), ela se emociona e recorda que as sementes desse protagonismo indígena feminino foram lançadas lá atrás, por outras lideranças mulheres que deixaram suas pegadas na história. Em 1976, em meio à luta contra a ditadura militar, Eliane fundou o Grumin (Grupo Mulher — Educação Indígena), um coletivo de mulheres indígenas que pautava temas como violação dos direitos originários das mulheres, saúde reprodutiva e o papel da educação.
É o legado de lideranças femininas como Quitéria Pankararu e Marta Guarani Kaiowá, já falecidas, que ela reivindica para dizer que sua literatura é porta-voz da ancestralidade feminina, não apenas do presente, mas das vivências das avós e das avós das avós. “Eu repasso toda a humanidade que recebi dessas mulheres que hoje são encantadas, ancestrais”, afirma à Radis. Formada em Letras e Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Eliane recebeu o título de doutora honoris causa, em dezembro de 2021, concedido pela mesma instituição em reconhecimento pelo conjunto de sua obra.
Nascida em uma família indígena expulsa do território na Paraíba após o assassinato de seu bisavô, Chico Solón, Eliane descobriu nas memórias de sua avó, Maria de Lourdes, e de mulheres como ela, a maioria anônimas, um caminho para unir outras mulheres originárias pelo Brasil afora. Rodou o país, viajou para diversas comunidades, falou sobre liberdade e questões de gênero em plena ditadura militar, recebeu ameaças de morte, não desistiu.
Casou-se com o cantor e compositor Taiguara (1945-1996), uruguaio radicado no Brasil, considerado por alguns como o artista mais censurado pelo governo militar. Em 2005, foi indicada para o Projeto Internacional Mil Mulheres pelo Prêmio Nobel da Paz e, em 2011, nomeada Embaixadora Universal da Paz em Genebra, além de colecionar outros prêmios, como os concedidos pelo Pen Club da Inglaterra e pelo Fundo Livre de Expressão dos Estados Unidos.
Mãe de três filhos, Eliane também é avó de seis netos. Hoje é ela quem reparte o legado de suas antepassadas com a literatura que escreve para jovens, crianças e adultos. Seu livro mais recente, O Vento Espalha Minha Voz Originária, acaba de sair pela Grumin Edições. Em conversa com Radis, Eliane falou sobre o protagonismo feminino na luta pelos direitos originários, destacou o papel da educação e da literatura para transformar mentalidades e combater preconceitos e ressaltou que a humanidade precisa despertar uma memória ancestral e reencontrar um caminho de amor, solidariedade e equilíbrio entre os povos e com a Mãe Terra. O que já era tema, há mais de 40 anos, de um de seus poemas, Amor entre Povos.
Leia a entrevista completa no site da Radis.
Confira ainda a edição 261 (junho de 2024) da revista na íntegra.