02/04/2018
Luiz Felipe Stevanim (Revista Radis)
A favela vive na luta e na voz de cada um deles e de cada uma delas. Sabrina - conhecida como MC Martina - pede licença no busão para recitar uma poesia: “Você conhece a raiz do gueto?”. Brenda descobriu na poesia marginal, feita nas ruas e na laje, um sentido para a existência que não encontrou na escola. Fransérgio luta contra estigmas e preconceitos que recaem sobre favelados e lembra: “Favela é resistência”. Jaílson lidera há décadas projetos de inserção social e cultural de jovens periféricos, que buscam transformar os olhares sobre os espaços em que vivem. Rodrigo acredita que é possível construir uma publicidade afirmativa sobre a favela, revelando as suas potências a partir de dentro. Thiago Taif colore as paredes de sua comunidade com as tintas de um sonho: ser um artista renomado. Érika e Rita entraram em universidades públicas e estão à frente de um pré-vestibular comunitário para que outros jovens como elas possam ter o mesmo direito. Pingo, ex-integrante do grupo Força do Rap, é conhecido em todo o canto de Acari como uma referência na defesa de seu povo e persiste organizando atividades culturais e artísticas onde mora.
Vidas nascidas na favela, esses nomes e muitos outros lutam para que as comunidades periféricas tenham acesso a direitos básicos, como educação, saúde, cultura, moradia, transporte e o mais essencial: o direito de viver. Até quando a favela vai ser vista apenas como “área de risco” e “espaço do crime”? É a pergunta que ecoa na fala de todas elas e todos eles. “Quantos mais vão precisar morrer antes que essa guerra acabe?”, afirmava Marielle Franco (PSOL), vereadora nascida na favela da Maré e executada no Rio de Janeiro em março. “Não entenderam ainda? A quebrada é tipo um livro e vocês matam a poesia que por ela corria...”, pergunta Brenda em seus versos. Mesmo com a violência e a discriminação, a poesia da favela vive e resiste.
Cadê a poesia do morro?
Uma voz ecoa no silêncio do trem: “Ataque!” Não é tiro que vem por aí, nem assalto. Como num eco, outros respondem: “Poético!” De repente, surgem cinco ou seis jovens, a maioria negros, e uma delas recita os versos: “Em nome do amor, se oprime, reprime e ilude. / Em nome da paz instaurada, a guerra que mata um preto, dentro e fora da favela, a cada 23 minutos.” Ao terminar, ela se apresenta: MC Martina, 20 anos, poeta, rapper e produtora cultural do morro do Alemão, no Rio de Janeiro. Alguns reclamam daquela voz que vem perturbar o silêncio, mas a maioria aplaude. Depois é no BRT. Outra jovem negra dá o papo: “Apressado, a poesia podia estar ao seu lado/ Tenho o destino traçado pelas vozes do Estado / Boné afundado na cara / Mó cara de bolado”. Quem fala é Brenda Lima, 19 anos; e como ela mesma afirma, seus versos, carregados de gírias e expressões do morro, das favelas e das quebradas - diferentes nomes como a periferia é chamada -, refletem a luta e a resistência de seus antepassados.
Os Ataques Poéticos nas praças, no transporte público e nas escolas são realizados pelo coletivo Poetas Favelados, um grupo de artistas da poesia e da música formados por jovens de diferentes favelas do Rio de Janeiro. Dentre eles, estão Sabrina Martina — conhecida como MC Martina -, Brenda Lima e o rapper Al Neg. “Nosso objetivo principal é levar a arte favelada, nossa cultura, informação e realidade para a galera que mora em periferia, mas que não tem acesso a esse tipo de literatura”, conta Sabrina. Para ela, as pessoas não acessam a arte pois precisam trabalhar para sobreviver. “O Ataque Poético é um sarau itinerante, que vai ao encontro dessas pessoas. É muito interessante ver a reação delas. Muitas estão com um semblante abatido, a fisionomia cansada, e durante o ‘Ataque’, a gente vê a mudança”, relata.
Sabrina é nascida e criada no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, e Brenda mora em Petrópolis, na região serrana do estado. As duas chegaram ao Ensino Médio sem perspectivas para o futuro. “Eu comecei a escrever poesia quando larguei a escola no segundo ano do Ensino Médio. Não me encaixava no modelo de ensino aplicado pelo Estado, que não estimula a pensar”, narra Brenda. Ela então conheceu a literatura de outras mulheres negras, como as escritoras Carolina Maria de Jesus e Elisa Lucinda, e decidiu que poderia fazer de sua própria poesia “uma forma de comunicação com o mundo”. “Eu sinto que, ao recitar, posso curar, alertar, denunciar, lutar”. Questões como racismo e violência aparecem em seus textos, segundo ela, como relato de “vivência própria”: “Não é sempre que falo, pois é algo que exige muita força, mas além de tudo aparece num tom de denúncia sobre o que meu povo sofre”.
Brenda lembra que, em sua poesia, não surge apenas a sua história, mas a expressão de “muitos de nós”. “Eu sou pelo que nós somos. Os meus irmãos interferem na minha arte e eu penso que posso e devo fazer por eles, intervir e trocar conhecimentos ancestrais que nos foram dados, tomados e que agora estamos retomando aos poucos”, afirma, lembrando um provérbio africano. Em um de seus versos, ela ressalta: “Eu sou a sombra dos meus ancestrais escravizados, sou poesia a chibatas, sou a música e dança que quase apagaram...” Em outra performance, ela se serve de um ponto de Umbanda para representar a orixá Oxum lavando os corpos dos meninos mortos. “Falo de todos nós, negros e negras vivos, fazendo sua arte, seu trampo, lutando contra o sistema que quer desde muito tempo nos ver mortos”, enfatiza.
A história de Sabrina não é diferente da vivida por Brenda: ao terminar o Ensino Médio, ela se viu sem emprego e nenhuma fonte de renda. Depois de participar de um projeto organizado por um coletivo de comunicação na favela, o “Gato Mídia”, abriu os olhos para algo que nunca tinha notado: o que havia de bom dentro da própria comunidade. “Eu não sabia que existiam tantos favelados universitários e tanta coisa acontecendo dentro da favela”, conta. Daí foi um passo para se descobrir produtora cultural e participar da organização de eventos nas favelas do Alemão e da Maré.
Do morro para o mundo
Sabrina transformou-se em MC Martina - e depois de acompanhar o trabalho do coletivo Poetas Ambulantes, na capital paulista, decidiu criar, junto com o amigo Al Neg, um coletivo de poesia com artistas das favelas do Rio, não só da capital, mas da Baixada Fluminense e do interior do estado. “A poesia está em tudo. Está em poder voltar para casa, ter comida pra comer, minha família estar bem, conseguir fazer as coisas que eu faço”, ressalta. A ideia era impactar o lugar onde mora, porque o Alemão contava com muitos coletivos de comunicação, mas nenhum voltado para poesia. “O objetivo inicial dos Poetas Favelados era combater o machismo, o racismo e uma série de preconceitos que existem na cena do hip hop. O coletivo realiza os Ataques Poéticos no busão, nas escolas e em vários lugares pela cidade, mas especialmente na favela e em espaços públicos”, descreve. O grupo conta hoje com cerca de oito integrantes oriundos de diferentes periferias do estado.
MC Martina também foi uma das idealizadoras do Slam Laje, a primeira “batalha de poesia” no Alemão feita pelos próprios moradores. O “slam” é um tipo de competição urbana em que os artistas recitam suas poesias em performances — os versos geralmente têm um caráter de resistência e politização. “O nosso objetivo é disseminar cultura e poesia marginal dentro da favela, furando a ‘bolha’”, conta. O projeto também reúne a famosa “batalha do passinho”, estratégia para se aproximar de crianças e adolescentes mais novos (a “menorzada”). “A favela é quilombo. A gente tem uma cultura incrível, não só a favela, mas o povo preto em si, sacou? Foi o povo preto que criou o samba, o hip hop e várias outras culturas. E arte é isso: um lugar que permite a gente ter voz e ser ouvido”, reflete.
A rapper não esconde as marcas que a violência, o racismo e a segregação deixam na população das favelas: “Já levei muita dura [da polícia]. Dura em moto, no busão, na rua. Qual o motivo da dura? Eu não deveria ter medo de policial, mas eles são uma das coisas que mais tenho medo”, aponta. Segundo ela, uma das características da cultura da favela é a capacidade de reinvenção. “Desde sempre o povo preto, a periferia, apanhou muito. Apanha, levanta e continua, porque é a necessidade. Eu não tenho a escolha de ser fraca, porque preciso cuidar da minha família, entendeu?” Ela destaca que os jovens negros e periféricos são sempre vistos como “suspeitos”. “Ao mesmo tempo a favela é um lugar onde existe a ausência de direitos. O Estado só vem aqui dando tiro. Que política pública existe hoje em dia para a favela e a periferia?”, questiona.
Em um de seus poemas, MC Martina compara a ocupação do Complexo do Alemão, em 2010, que teve ampla cobertura midiática, com a “ocupação” do Brasil pelos portugueses em 1500: “A cor do colonizador nunca mudou / Mas o discurso sim de novo te enganou”, afirma. “Ser pobre, negro e favelado é ser criminalizado pelo que você é”, acrescenta à Radis. Estudante de um pré-vestibular comunitário, a menina nascida no Alemão planeja fazer faculdade de Ciências Sociais e continuar sua carreira como rapper, poeta e produtora cultural. Ela também faz parte do coletivo “Movimentos”, grupo de jovens de periferias do Rio que discutem e propõem uma nova política de drogas. “Antes de ser MC, sou favelada, sou preta e sou pobre. As pessoas não sabem o que a gente passa por trás do microfone. O triste é que estou falando isso pra você, essa matéria vai ao ar e muita gente não vai se ligar, porque já tem o coração frio. Não tem empatia”, desabafa.
Histórias como as de Brenda e Sabrina, que fazem poesia na favela, foram tema do filme “Meu fuzil é a poesia” (Grito Filmes), dirigido por Fernando Salinas e Victor Hugo Liporage e produzido por Cinthia Martins. O curta reuniu performances de diversos coletivos e poetas nas ruas, favelas e escolas do Rio de Janeiro. “A Suburbana estava marcada com sangue de João. / Quem dera fosse com migalhas de pão?”, sentenciam os versos do rapper Dyonnás Sykeira. Em conversa com Radis, Brenda afirmou que existe sim espaço para cultura na favela, mas esse enfoque não interessa ao Estado. “O que vende é a guerra e o massacre, a desigualdade, a falta desse olhar para a educação e para o resgate da nossa cultura”, avalia. Para ela, as pessoas querem cada vez mais se armar, mas o armamento “nunca foi garantia de paz e sim do caos”. “Cabe a gente fazer uma reflexão sobre nós que fomos afastados da nossa própria cultura e tivemos acesso negado ao direito de ser e estar, com um único objetivo: pretos contra pretos, pobres contra pobres se matando a mando do Estado, enquanto ele aplaude e fica com todo o lucro”, constata.
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