16/05/2022
Liseane Morosini (Revista Radis)
Em um passeio pelas ruas da cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, é comum que algum morador logo se apresente a Cesar Victora como uma das pessoas nascidas em 1982 e que, desde então, têm seus dados de saúde anotados e tabulados pela equipe coordenada pelo epidemiologista. O estudo de coorte — como é chamado — acompanha, desde o momento do parto, há 40 anos, seis mil recém-nascidos em hospitais no município. Ao longo das quatro últimas décadas, a pesquisa desenvolvida pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) revelou dados importantes que jogaram luz sobre os reflexos da desigualdade nas condições de saúde. “Fazer parte das coortes é motivo de orgulho para todos”, afirma Victora, em referência a um dos mais longos estudos longitudinais realizados no mundo.
O estudo da Coorte de Nascimentos de Pelotas, realizado sistematicamente desde 1982, colocou o nome de Cesar Gomes Victora em destaque na pesquisa científica mundial. Trouxe também evidências de que muitos dos problemas que afetam os adultos têm origem no início da vida, incluindo a gestação. E, ainda, mostrou que estudos de coorte de nascimento poderiam ser implementados com sucesso em países em desenvolvimento, como o Brasil.
À investigação de 1982, seguiram-se as realizadas em 1993, 2004 e 2015, que continuam acompanhando cerca de 20 mil pessoas e permitiram análises comparativas entre gerações. O começo foi difícil, praticamente sem recursos, e feito na casa dos entrevistados. “Os entrevistadores levavam balança para pesar as crianças, antropômetros para medir altura, faziam uma série de aferições em domicílio”, conta o pesquisador à Radis. Com os resultados, veio a visibilidade. O estudo de Pelotas teve desdobramentos e transformou o Centro de Pesquisas Epidemiológicas da UFPel em referência internacional na área.
Médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1976, Cesar Victora cursou doutorado na Escola de Higiene e Medicina Tropical da Universidade de Londres, em 1983, e sua trajetória científica ajudou a definir políticas globais em diversas áreas. O pesquisador liderou o primeiro estudo epidemiológico a constatar a relação direta entre amamentação e prevenção da mortalidade infantil. Seu trabalho também identificou que as intervenções nutricionais realizadas nos primeiros mil dias de uma criança são mais importantes que intervenções tardias. “Vimos que o custo-benefício é muito maior se a intervenção nutricional ocorrer entre a gestação e os dois primeiros anos. Vale mais a pena investir na nutrição infantil para melhorar a saúde e o capital humano dos adultos”, afirma.
Além disso, suas pesquisas consolidaram a importância do aleitamento materno exclusivo e serviram de base para a política de amamentação adotada, a partir de 1991, pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Com esses estudos, foi possível relacionar a amamentação exclusiva a efeitos positivos sobre a renda, a escolaridade e a inteligência das crianças. Victora teve também papel decisivo para o desenvolvimento das Curvas de Crescimento Infantil, que resultaram em padrões de referência para a avaliação do crescimento de crianças e que são utilizadas em mais de 150 países.
O epidemiologista tem uma produção de alta relevância e seu nome figura entre os pesquisadores mais citados no meio científico de todo o mundo. Victora avalia que sua pesquisa é ancorada na “epidemiologia de pé descalço” — e fez com que viajasse intensamente e visitasse locais remotos no mundo, como conta à Radis. “Durante 20 anos, fiz cerca de 15 viagens por ano, trabalhei em mais de 50 países. Minha especialidade é essa, ir de casa em casa entrevistar, examinar e ver as condições de vida das pessoas”. Foi nessas viagens que o cientista conheceu realidades mais desiguais do que aquela enfrentada no país. “O Brasil tem bolsões de pobreza, mas em certos países o bolsão inclui 90% da população”, compara.
Cesar Victora firmou o caminho para a pesquisa sobre os determinantes sociais em saúde ao identificar, em sua tese, que a condição de saúde de crianças que viviam em minifúndios — onde a renda é menos desigual e as famílias são proprietárias da terra — era melhor do que a de crianças que viviam em áreas de latifúndios. Em 1988, publicou o primeiro livro da coorte de Pelotas, Epidemiologia da Desigualdade, em coautoria com os professores Fernando Barros, da UFPel, e Patrick Vaughan, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, que foi seu orientador. Juntos, os três pesquisadores formaram uma bem-sucedida rede de colaboração que fortaleceu os estudos no campo da desigualdade e da epidemiologia do ciclo vital, que começa na concepção e atravessa a vida toda.
Cidade situada no extremo sul do Brasil, que foi cenário de três grandes produções televisivas e famosa por seus doces, foi de Pelotas que Cesar Victora respondeu à entrevista por uma multiplataforma de mensagens. Nesta edição, Radis traz o perfil de um cientista que há 40 anos está envolvido com pesquisa e que vê com tristeza o êxodo científico. “Estou chegando ao final da minha carreira, fui formado no país e no exterior com dinheiro do contribuinte brasileiro. Acredito que retribuí fazendo pesquisas no Brasil”, afirma. Segundo ele, os cortes na área de ciência e tecnologia têm impactos na qualidade de vida e no SUS, que considera essencial para reduzir as desigualdades. “O SUS e a Estratégia Saúde da Família foram muito positivos. Vejo com muita tristeza que o SUS sempre foi subfinanciado, mas atualmente está bem pior. Tem dinheiro para algumas coisas e não tem para outras mais básicas. É uma tragédia”, resume.