27/09/2019
Julia Dias (Agência Fiocruz de Notícias)
A história da saúde global e da Organização Mundial da Saúde (OMS) é muitas vezes contada a partir das poucas vozes que estão em posições de comando. A perspectiva histórica multilateral e a pesquisa em ciências humanas podem, no entanto, trazer novas descobertas que colocam em xeque a ideia de que as decisões da saúde global são tomadas por poucos atores de países dominantes. Esta é a proposta do pesquisador da Universidade de York e chefe do Centro Colaborador da OMS sobre História da Saúde Global, Sanjoy Bhattacharya, que esteve na Fiocruz para o 135º Seminário de História da Saúde Global, que teve como tema Atenção Primária à Saúde em perspectivas históricas e políticas.
Além de Sanjoy Bhattacharya, participaram da mesa o pesquisador da Ensp/Fiocruz e coordenador da Rede Zika de Ciências Sociais, Gustavo Matta, e o professor da COC/Fiocruz e editor da revista História, Ciência e Saúde - Manguinhos, Marcos Cueto, na condição de mediador (foto: Peter Ilicciev)
O seminário aconteceu na última quarta-feira (25/9), no Salão de Conferências do Centro de Documentação e História da Saúde (CDHS) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Além de Sanjoy Bhattacharya, participaram da mesa o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz) e coordenador da Rede Zika de Ciências Sociais, Gustavo Matta, e o professor da COC/Fiocruz e editor da revista História, Ciência e Saúde - Manguinhos, Marcos Cueto, na condição de mediador.
Descolonizar a história da OMS
“A história da Saúde Global é muito importante porque nos mostra as múltiplas vozes que estavam presentes quando foram feitas as políticas, não só no nível da sede da OMS, mas também nos escritórios regionais e em todos os estados-membros, onde a política de saúde é implementada”, explicou o pesquisador da Universidade de York, que possuí um estudo sobre o controle da varíola na Índia.
Sanjoy Bhattacharya defende a pesquisa em outras línguas, que não as línguas oficiais da ONU, para que se tenha uma visão mais completa da história da OMS. “Precisamos construir uma história da OMS de baixo para cima”, argumenta ao incentivar também que se olhe para o que os escritórios regionais estavam fazendo e o que os países que não são tidos como protagonistas estavam propondo.
O chefe do Centro Colaborador da OMS relembra que no momento histórico em que a OMS foi criada, logo após a Segunda Guerra Mundial, processos políticos importantes estavam acontecendo no mundo, como luta por independência de colônias asiáticas e africanas. A luta das antigas colônias também teve forte influência em conquistas importantes como o reconhecimento da Atenção Primária como prioritária durante a Conferência de Alma Ata, em 1978.
O historiador chama atenção para a composição do primeiro Comitê Executivo da OMS, que tinha representantes de países como Brasil, Egito, Índia, México e Irã. “O que estes países estavam fazendo e propondo ali?”, pergunta-se. “Eu gosto de fazer perguntas inconvenientes”.
“Com frequência, quando só focamos na sede da OMS, nos esquecemos que existem muitos fatores locais que entram no processo de implementação de políticas e programas: preparação para pesquisa, preparação para análise e preparação para implementação”, explica o pesquisador.
Para ele, o processo de tomada de decisão e implementação na OMS pode ser descrito como “um mosaico complexo e horizontal de pensamentos, negociações e ações”.
“Quando nós estudamos a história crítica da pesquisa em saúde, o que conseguimos fazer é encontrar exemplos locais. Exemplos de sucesso na produção de dados, em envolvimento comunitário e análise, e, mais importante, exemplos de sucesso de colaboração comunitária na implementação”, afirma.
Desafios para a Atenção Primária em saúde
Em seguida, o pesquisador da Ensp Gustavo Matta apresentou alguns dos principais desafios que a ideia de atenção primária encontra hoje. Entre eles, Matta destacou o financiamento, as tensões entre os interesses público e privado e a questão das inequidades entre países e nos países. Para ele, estas tensões colocam questões difíceis de ser respondidas, mas que precisam ser enfrentadas para que se garanta a saúde como um direito humano.
Segundo o sociólogo, a forma como são produzidos e apresentados os dados sobre saúde pelos relatórios e mapas de organismos e agências internacionais podem trazer dificuldades para o entendimento dos problemas. “Muitas vezes os relatórios da OMS e de outras agências apresentam definições simplistas, que escondem iniquidades”, afirma. Um exemplo, segundo Matta, é o Relatório Mundial da Saúde de 2006, que traz um mapa com os países que possuem escassez de trabalhadores de saúde. O mapa, no entanto, não permite olhar as desigualdades dentro dos países e reduz um problema importante, que é o acesso à saúde, a um único indicador.
Para o coordenador da Rede Zika, quando se observa o cenário da saúde global e a discussão sobre atenção primária hoje, é preciso olhar além da OMS. As agências financiadoras dispõem de boa parte do orçamento para programas, além disso as grandes farmacêuticas também desempenham um papel importante neste contexto, uma vez que seus interesses econômicos interferem diretamente na oferta de medicamentos.
Considerando a atenção primária como uma das principais políticas em debate na área da saúde, Matta concorda com o documento produzido por pesquisadores da Fiocruz e apresentado durante a Conferência Global sobre Atenção Primária à Saúde, realizada ano passado em Astana, Cazaquistão. O texto da Fiocruz considera que a atenção primária não pode equivaler a uma proposta reducionista de cobertura universal em saúde, sob o risco de restringir as possibilidades de garantia do direito humano à saúde.
Mediação
O mediador Marcos Cueto acrescentou ao debate um breve histórico sobre a proposta de Cobertura Universal da Saúde, que acaba de ser aprovada como um compromisso global na Assembleia-Geral da ONU. “A ideia de cobertura universal surgiu entre os anos de 2003 e 2006, quando a OMS teve um diretor coreano, Jong-Wook Lee. Ele considerava que a cobertura universal era uma proposta que seria acompanhada de outras medidas importantes, por exemplo, a discussão sobre determinantes sociais da saúde”, explicou Cueto.
O pesquisador da COC conta que durante sua gestão, interrompida por sua morte, Lee tomou uma série de ações, como a criação da Comissão de Determinantes Sociais, o lançamento de relatórios importantes e a criação de uma política de acesso a medicamentos para AIDS. “Por trás dessa política, havia a ideia de que a saúde pública era um bem público e não uma mercadoria, como é defendida por muito defensores da privatização”, afirmou.
Para Cueto, após a morte de Lee, a diretora seguinte da OMS, Margaret Chan, não teve tanto interesse nessa visão holística da cobertura universal. Além disso, a crise econômica de 2008 afetou propostas mais abrangentes. “Eu acho que depois de 2018 algumas agências começaram a ver de uma maneira mais reducionista ainda a cobertura universal da saúde. Esquecendo essa proposta mais integrada e holística que havia feito Lee quando foi diretor e esquecendo os princípios de Atenção Primária em Saúde e de Serviço Universal de Saúde, que é defendido por países como Brasil”, opina.
Com a aprovação da proposta de cobertura universal como compromissos dos países e prioridade da OMS, Cueto acredita que o debate chegue a outro momento. “O dilema que existe agora é se nessa luta pela saúde como um direito de todos, vamos fazer aliança com os defensores da cobertura universal ou vamos ter uma postura mais crítica”, afirma.
Seminários de Histórias da Saúde Global
Este foi o 135º Seminário sobre Histórias da Saúde Global, organizado pelo do Centro Colaborador da OMS sobre História da Saúde Global. Os seminários acontecem desde 2005 cada vez em um local diferente e buscam trazer uma visão crítica da história da saúde global. Esta edição foi organizada por uma colaboração entre Rede Zika de Ciências Sociais, pela Casa de Oswaldo Cruz, pela Universidade de York, o do Centro Colaborador da OMS sobre História da Saúde Global e a Wellcome.