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25/04/2008

Trevor Hancock explica conceito de Cidades Saudáveis

Informe Ensp


Trevor Hancock, consultor internacional em promoção da saúde da OMS, assessor em saúde pública do Ministério da Saúde do Canadá e um dos mentores do movimento internacional de Cidades Saudáveis, esteve no Brasil para participar de atividades do projeto de cooperação Brasil-Canadá sobre Ações Intersetoriais em Promoção da Saúde e Desenvolvimento Local. Em sua permanência, visitou instituições acadêmicas, entre elas a Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz, onde proferiu a palestra Saúde urbana e cidades saudáveis, inaugurando as atividades de 2008 do Centro de Estudos da Escola. Em entrevista, Hancock mostrou otimismo com relação a algumas experiências que conheceu no Brasil e defendeu a possibilidade de se pensar um novo modelo de desenvolvimento que coloque o ser humano em primeiro lugar.


 Hancock: uma cidade saudável não combate a violência com a colocação de grades (Foto: Virginia Damas)

Hancock: uma cidade saudável não combate a violência com a colocação de grades (Foto: Virginia Damas)


Que diferença existe entre os conceitos de saúde urbana e de cidade saudável?


Trevor Hancock: Saúde urbana tem a ver com a saúde do assentamento urbano, no que se refere ao seu próprio funcionamento como uma comunidade e como um ecossistema, mas também com a saúde das populações humanas que habitam esse ecossistema e com os serviços de cuidado à saúde. A proposta de cidade saudável, por sua vez, é uma tentativa de concretizar o conceito de 'promoção da saúde' expresso na Carta de Ottawa, em 1986. Nesse sentido, tem a ver com políticas e práticas que permitam e facilitem o 'processo de ajudar as pessoas a aumentarem e melhorarem o controle sobre sua saúde'. O conceito de cidade saudável diz respeito a um processo, à idéia de governança. É o processo que nos leva de onde estamos para onde queremos chegar; é a projeção futura dos nossos valores. Numa cidade saudável, por exemplo, não se combate a violência com a colocação de grades e nem com o uso de violência. É preciso compreender que os problemas não se resolvem do dia para a noite. É preciso que se inicie um processo de mudança das normas sociais, que sejam criadas formas de promover a coesão da sociedade.


Por que utilizar o conceito de ecossistema urbano, quando pensamos em cidades saudáveis?


Hancock: Por definição, ecossistemas são comunidades de organismos que interagem entre si e sua relação com o ambiente em que vivem. Nós, seres humanos, somos 'comunidades de organismos que interagem entre si' e o ambiente físico em que vivemos é cada vez mais a cidade. Logo, para os seres humanos, a cidade acaba sendo o principal ecossistema, o qual engloba o ambiente construído - que eu sempre digo de brincadeira que é o 'habitat natural' do homem atual; os ambientes social, econômico, cultural e político; as bioregiões e a biosfera; os seres humanos e os outros organismos biológicos.


O fato de sermos animais sociais faz com que o meio urbano represente, em termos de promoção da saúde, tanto um local físico quanto um espaço social. É importante, no entanto, destacar que as cidades não existem isoladamente, elas integram bio-regiões e ecossistemas locais e globais, sistemas econômico e político local, regional, nacional e global, cultura e sistema de valores etno-racial e nacional. Isto é, a saúde do ecossistema está sujeita a diversos fatores e, em todos os aspectos, o desenvolvimento e a segurança dos seres humanos estão intimamente ligados à integridade e à viabilidade dos ecossistemas. Essa rede da vida é vital para nossa sobrevivência como espécie, mas tão vital quanto ela é a nossa rede de relações sociais, que também precisa ser mantida e fortalecida. Nesse sentido, eu destaco ainda o conceito de sustentabilidade social urbana, que é a capacidade de uma cidade funcionar, a longo prazo, como um ambiente propício para a interação humana, a comunicação e o desenvolvimento cultural.


Que características o senhor destacaria numa cidade socialmente sustentável?


Hancock: Eu diria, concordando com outros autores, que é uma cidade marcada pela vitalidade, pela solidariedade e por um sentido comum de pertencimento entre seus residentes - impossível de se manifestar em áreas de grandes desigualdades sociais, por exemplo -, bem como pela falta de conflitos violentos entre grupos e pela inexistência de uma visível segregação espacial ou de instabilidade política crônica.


Em sua palestra, o senhor falou em 'bioregião' e 'ecologia social'. A que se referem esses conceitos exatamente?


Hancock: Bioregião é um território definido pela combinação de critérios biológicos, sociais e geográficos, em vez de considerações geopolíticas. Em geral, representa um sistema de ecossistemas interligados. A idéia de bioregião é muito importante dentro do conceito de governança, pois aponta a priori para alguns problemas que é preciso administrar e define alguns recursos que existem à nossa disposição. Ecologia social, por sua vez, é o estudo das relações entre indivíduos, grupos sociais e seus ambientes. Por meio da ecologia social, podemos analisar, de forma interdisciplinar, os complexos problemas que a sociedade contemporânea enfrenta em seus ambientes físico e social. A ecologia social, portanto, pode nos ajudar bastante a enfrentar alguns desafios importantes da saúde pública.


Que dimensões o senhor destacaria em termos de saúde do ecossistema urbano? E de que forma isso se relaciona com a saúde de seus habitantes?


Hancock: Em primeiro lugar, eqüidade da saúde, ou seja, a distribuição eqüitativa de bem estar físico e mental entre os diferentes segmentos sociais. Além disso, o bem estar social, econômico e cultural da população. Dimensão esta relacionada à distribuição dos determinantes sociais de saúde. A qualidade do ambiente construído, incluindo a qualidade das moradias, do sistema de transporte e do saneamento; a existência de espaços públicos, como parques e áreas de recreação, entre outros. A qualidade do meio ambiente, considerando os níveis de poluição sonora, do ar e da água. A saúde dos outros organismos vivos que convivem com os seres humanos, a biodiversidade. E tem ainda o que eu chamo de 'impressão digital (ou pegada) ecológica', que é o impacto que o meio urbano imprime no meio natural no qual está inserido. A 'saúde' de uma cidade, portanto, é determinada por vários fatores sócio-ecológicos. A saúde dos seus cidadãos, por sua vez, depende da 'saúde' da cidade, mas também de fatores individuais - biologia humana, hereditariedade, comportamento pessoal e recursos financeiros - e da existência e efetividade dos serviços de saúde.


Voltando à questão das cidades saudáveis. O que é importante ter em mente?


Hancock: Como eu disse anteriormente, 'cidades saudáveis' tem a ver com o processo de concretização dos princípios da promoção da saúde expressos na Carta de Ottawa, ou seja, com a construção de políticas públicas saudáveis, a criação de ambientes favoráveis a saúde, o reforço da ação comunitária, o desenvolvimento de competências pessoais e a reorientação dos serviços de cuidados à saúde. E isso tudo nos leva à questão da governança, que pode ser entendida como a gestão do curso dos acontecimentos em um sistema social, como a soma das várias formas que indivíduos e instituições, públicas e privadas, têm para planejar e gerir os assuntos comuns da cidade. Um bom exemplo da idéia de governança são os conselhos de saúde, que representam uma tentativa, em alguns casos muito bem sucedida, de democratizar a gestão de saúde no Brasil.


Mas como lidar com a questão dos interesses públicos e privados, que nem sempre são os mesmos, quando se fala em governança, especificamente na área da saúde?


Hancock: Bem, o principal propósito da governança e também dos governos deveria ser o desenvolvimento humano sustentável e eqüitativo. A governança das cidades deve considerar as preocupações e os problemas comuns aos cidadãos; ela demanda uma visão comum desses problemas e implica em abordagens e soluções compartilhadas. Nesse sentido, a melhoria das condições de saúde da população, que deveria interessar a todos, ou pelo menos a maioria das pessoas, deve ser um item primordial dessa agenda comum, criando novas formas de governança nas corporações, na sociedade, de uma forma mais ampla, e nas cidades.


Como assim, novas formas de governança?


Hancock: No caso da governança das empresas, eu penso que isso tem a ver com economia sustentável, com responsabilidade social, com a criação de selos de qualidade, o ISO14001, por exemplo, com o chamado 'investimento ético', com a democratização nos espaços de trabalho. Na governança da sociedade, eu creio que o principal é o planejamento e a ação integrados que envolvam os três setores - publico, privado e sociedade civil organizada -, a análise de impacto do desenvolvimento humano e a democratização das relações. No caso das cidades, eu citaria a participação democrática dos cidadãos, o fortalecimento dos serviços, o desenvolvimento das comunidades e, por que não, a adesão à idéia de bio-regiões. A questão é que hoje ainda prevalece a construção e fortalecimento do capital econômico em detrimento dos capitais natural, social e humano. A idéia dessa 'nova governança' é colocar o capital humano no centro do processo.


Intersetorialidade e parceria seriam, portanto, palavras-chave desse processo?


Hancock: Sim, no caso da saúde, eu lembro que três aspectos da intersetorialidade foram considerados fundamentais pelo programa Saúde para todos da OMS. A primeira delas interna, envolvendo departamentos, ministérios e agências governamentais ou segmentos de universidades, empresas comerciais, grandes ONGs, igrejas etc. A segunda, intersetorial propriamente dita, envolvendo os diferentes setores da sociedade. E por fim, aquela que atravessa verticalmente os diversos níveis de atuação das organizações e dos governos - local, regional, nacional, global -, pois, muitas vezes, uma questão local demanda ou depende de uma legislação nacional. Quanto às parcerias, eu diria que o primeiro passo para estabelecê-las é buscar uma causa comum, por meio de três perguntas básicas: 'O interesse do outro é compatível com o meu?', 'No que eu posso ajudá-lo?' e 'No que ele pode me ajudar'. Um exemplo, se o interesse do governo e dos cidadãos é melhorar a educação, que parceiros teriam interesse em investir no aprimoramento do capital humano. Parcerias só se concretizam se houver benefício mútuo.


No caso da saúde, como estabelecer parcerias com o setor privado, cujo principal objetivo é o lucro?


Hancock: Em primeiro lugar, temos que ter em mente que a parceria com o setor privado pode ter aspectos bastante positivos, pois as empresas têm recursos financeiros, habilidades e competências, agilidade e outras características úteis. No entanto, é impensável fazer parceria com empresas que lucram com a falta de saúde, como os grandes conglomerados farmacêuticos, por exemplo, ou com empresas cujos produtos trazem doenças, como a indústria do fumo. É necessário buscar parceiros cujos ganhos aumentem na medida em que a saúde da população melhore, como as companhias de seguro e as agências de turismo, ou empresas que 'produzam saúde', por meio de alimentos saudáveis, equipamentos que consumam menos energia ou evitem danos aos trabalhadores e etc. Também é interessante tentar envolver empresas locais, que estejam mais próximas da comunidade, sempre buscando que essas empresas também aprimorem seu processo produtivo e respeitem a legislação trabalhista e ambiental.


Depois de sua visita ao Brasil, há motivos para otimismo?


Hancock: Bem, eu vi várias experiências positivas por onde passei. Em Curitiba, de onde estou vindo, pude conhecer melhor algumas políticas públicas voltadas para a qualidade de vida e desenvolvimento urbano sustentável. Também vi que, em alguns aspectos, principalmente na área da saúde, no que se refere ao SUS, vocês estão muito à frente do Canadá. É lógico que ainda há muito que fazer, mas isso é assim mesmo. O processo é lento. Ora avançamos, ora voltamos atrás. Muitas vezes desanimamos porque nada parece funcionar, nada faz sentido. Mas isso não pode nos impedir de continuar. Que eu saiba, nunca ninguém conseguiu mudar o mundo sozinho, mas isso não quer dizer que não podemos nos unir para mudar o mundo se essa for a nossa vontade.

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