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26/03/2015

Tuberculose não é coisa do passado

Margareth Dalcolmo*


Perdeu o lirismo a velha tísica da iconografia de óperas e romances, que fez passar partes de suas vidas em sanatórios artistas e poetas até a metade do século passado. Após a Segunda Guerra Mundial, surgiram os primeiros medicamentos para tratamento, iniciando pela estreptomicina, até a rifampicina, no fim dos anos 60, e ainda hoje protagonista no tratamento da tuberculose.

Apesar dos avanços nos últimos anos, com redução de 25% na incidência e 32% na mortalidade, o Brasil está entre os 22 países de maior carga de tuberculose no mundo, com 70 mil casos novos e cerca de quatro mil mortes anuais. Doença urbana, ligada a condições de vida, sua redução no país nas últimas décadas tem sido desigual. A redução anual, de cerca de 2,5%, é muito aquém da esperada.

Com a expectativa de erradicação nos próximos 50 anos, seria necessária uma queda de 6% ao ano. No mundo, três países do Brics — China, Índia e África do Sul — concentram 60% dos casos.

Identificar o sintomático respiratório, definido como a pessoa com tosse há mais de três semanas, e tratar é o mais eficiente. O tratamento, recomendado mundialmente, é composto de uma associação de fármacos de comprovada eficácia, utilizada há mais de 30 anos. Há evidências de que sua efetividade, porém, depende não só da disponibilidade de bons medicamentos, mas de fatores como adequada organização de ações, recursos humanos qualificados e tratamento humanizado.

Cinquenta anos após o lançamento da rifampicina, vivemos um momentum, com a descoberta de novas moléculas e estudos clínicos para testar eficácia e redução do tempo de tratamento. Há cerca de 20 novas moléculas em diversas fases de estudo e dois novos fármacos (bedaquilina e delamanide) recentemente aprovados por órgãos regulatórios internacionais para formas multirresistentes. Deverão estar disponíveis no Brasil no próximo biênio.

Foi no início dos anos 90, com a epidemia de Aids e a alta mortalidade na associação HIV-tuberculose — a mais frequente e de maior morbidade e mortalidade —, que prosperaram ações visando à redução da doença no mundo. O Banco Mundial, pelo impacto econômico da mortalidade de jovens, e a Organização Mundial da Saúde denominaram a doença emergência mundial desde 1993.

O Brasil tem sido exemplo, desde a formulação de normas para diagnóstico e tratamento elaboradas em conjunto pelo Ministério da Saúde e a comunidade acadêmica, com participação da sociedade civil, sem conflito entre medicina pública e privada. Alguns fatos merecem registro: o pioneirismo dos esquemas de tratamento encurtados, de dois anos para seis meses, permitindo o fechamento de sanatórios e o tratamento ambulatorial nos anos 80; o reconhecimento de grupos vulneráveis, em que a incidência é centenas de vezes mais alta do que na população geral, como indígenas, presidiários, pessoas com HIV e população de rua; medicamentos formulados em comprimidos de dose fixa combinada, que reduz de nove para quatro comprimidos diários; aquisição de equipamentos e insumos para diagnóstico rápido molecular; criação de centros de referência para casos complexos; e um banco de dados on-line, de alcance nacional, para vigilância epidemiológica; além de iniciativas como a Frente Parlamentar contra a Tuberculose e o aumento de orçamento de US$ 15 milhões em 2002 para US$ 85 milhões em 2014. Tudo isso compõe o arcabouço de governo, profissionais da saúde e sociedade civil.

Nesse cenário teoricamente favorável, é inadmissível o paradoxo de morrerem por ano quatro mil brasileiros de uma doença diagnosticável, tratável, virtualmente curável e com tratamento gratuito — o que nos permite, tristes, concluir que não existe mau paciente, e sim serviço de saúde ineficiente.

*Margareth Dalcolmo é pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.

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