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06/08/2006

A arte de enganar a natureza Contracepção, aborto e infanticídio no início do século 20

Pedro Sloboda















A arte de enganar a natureza

Fabíola Rohden

Editora Fiocruz

248p. R$ 27,00
(...)

Quando, seu moço, nasceu meu rebento

Não era o momento dele rebentar

Já foi nascendo com cara de fome

E eu não tinha nem nome pra lhe dar

(...)

Trecho da música O meu guri, de Chico Buarque


Entre 1870 e 1920, as taxas de natalidade de alguns países ocidentais caíram consideravelmente, assustando intelectuais e políticos, temerosos de seus supostos efeitos calamitosos - ameaça à soberania nacional devido à redução populacional e degeneração racial gerada pela entrada de estrangeiros e pela miscigenação. Com isso, a discussão sobre a reprodução e o controle de natalidade saiu da intimidade dos quartos e se transformou numa questão de interesse nacional, gerando um conflito entre Estado e cidadãos. O assunto é o tema do livro A arte de enganar a natureza: contracepção, aborto e infanticídio no início do século XX, de Fabíola Rohden, publicado pela Editora Fiocruz.


Para escrever o livro, a autora desencavou teses e dissertações da antiga Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, hoje parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e consultou inquéritos e processos judiciais no Arquivo Nacional. Esse minucioso trabalho de pesquisa permitiu detalhar e analisar o discurso oficial sobre o assunto no Brasil, desvendando a complexa rede que envolvia a luta de juízes, delegados, médicos e políticos contra os meios contraceptivos e silenciosa resistência das mulheres da época.


Inicialmente, Fabíola faz um histórico de como a reprodução se converteu em problema político de grande importância em todo o mundo no início do século 20, após a queda do índice de natalidade observada no fim do século anterior. Entre as razões para essa redução estão o maior acesso a recursos contraceptivos (camisinhas, diafragmas e seringas) e abortivos e a entrada das mulheres no mercado de trabalho.


Os discursos produzidos na academia, nos tribunais, nos jornais e na política mostram uma reação a esse movimento, que ficou conhecido como "transição demográfica". A contracepção, o aborto e o infanticídio eram considerados aberrações diante das leis da natureza, crimes pelas leis dos homens, atentados à moral e ameaça à soberania nacional e à higiene da raça. A inserção da mulher no mercado de trabalho também era vista com maus olhos, pois incentivava a idéia de planejamento familiar.


Já a esterilização, outra medida contraceptiva, encontrava inflamados defensores entre os partidários da eugenia, muito popular entre os intelectuais do período. Baseados no determinismo biológico tão em voga nas pesquisas científicas da época, médicos e políticos apoiavam a esterilização como maneira de impedir a "procriação por parte de sujeitos que, por doença ou defeito transmissíveis por herança, só podem dar ao mundo filhos também doentes e defeituosos". Entre os males transmitidos hereditariamente estariam a imbecilidade, a loucura moral, o alcoolismo, a tuberculose, a paranóia, o cretinismo e a delinqüência. Era a tentativa levar para a reprodução humana as técnicas de purificação racial usada em animais domésticos e de criação.


No livro, a autora defende que essa discussão científica, jurídica e política em torno do controle da reprodução acabou por gerar uma configuração de idéias particular, que atribuía à mulher o papel natural de mãe e a relegava à vida no lar. Tal ideário está perfeitamente imerso no contexto científico e político vivido no momento, carregado de tons nacionalistas, eugênicos e machistas. Médicos e estadistas condenavam os avanços negativos da civilização, acusando-os de distanciar a mulher da maternidade, seu destino natural. Silenciosamente, elas resistiam, insistindo que a concepção deveria ser determinada por escolhas individuais. Anos mais tarde, o silêncio se fez barulho, sutiãs foram queimados, passeatas e discussões políticas demonstraram a ascensão do movimento feminista em meados do século 20.

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