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21/03/2006

A influenza animal e o homem

Hermann Schatzmayr *


A influenza ao longo da História

A influenza é uma doença infecciosa aguda descrita como quadro clínico no homem desde passado remoto. Como os sintomas clínicos são característicos de uma infecção respiratória e que aparecem no homem de forma súbita e permanecem por algumas semanas, é possível identificar, historicamente, episódios e mesmo epidemias, a partir daquela descrita por Hipócrates em 412 aC.

Monika Barth/Fiocruz 
 

 Imagem de um vírus influenza
Imagem de um vírus influenza

Episódios similares ocorreram na Idade Média. Dados coletados retrospectivamente, relativos ao período de 1500 a 1800, mostram que ao longo dos séculos se observaram nestas epidemias as características ainda atuais, de um quadro com alta mortalidade e morbidade em humanos de idade mais avançada, a ocorrência de surtos em períodos irregulares e uma tendência de as epidemias se espalharem no mundo a partir da Ásia, alcançando a Rússia e posteriormente a Europa, África e depois as Américas. A mais severa epidemia de influenza humana ocorreu entre 1918 e 1920, com a morte de 40 milhões de pessoas, inclusive no Brasil.

Este episódio levou a se acelerarem os esforços para identificar o agente da influenza e em 1931 Shope nos EUA demonstrou que a influenza suína era causada por um vírus, tendo sido observada a presença de casos humanos na mesma região. Dois anos mais tarde Smith, Andrews e Laidlaw, na Inglaterra, isolaram um vírus muito semelhante, através da inoculação intranasal, em furões, de material clínico obtido de casos humanos de influenza. Hoje se sabe que estes vírus pertencem à familia Orthomyxoviridae com os gêneros Influenza A, Influenza B e Influenza C, descobertos respectivamente em 1933, 1940 e 1947. Influenza A é o mais importante gênero, sendo encontrado em largo número de hospedeiros como aves selvagens e domésticas, suínos, eqüinos e o homem, sendo ocasionalmente isolado também em animais aquáticos como baleias. Influenza B e C atingem apenas o homem, causando, via de regra, quadros menos graves.

O vírus

Os vírus influenza apresentam um genoma segmentado em oito fragmentos, o que é importante para uma de suas características mais marcantes, que é a capacidade de sofrer rearranjos e recombinações durante sua multiplicação no organismo, inclusive a formação de novos vírus quando duas amostras diferentes se multiplicam na mesma célula do hospedeiro.

Esta propriedade é restrita, porém, à influenza A, os demais membros do grupo não apresentam esta capacidade. Influenza A apresenta em sua superfície estruturas denominadas hemaglutinina (HA) e neuraminidase (NA), sendo que foram descritos 16 subtipos de HA e nove de NA. Todos estes subtipos estão presentes em aves silvestres aquáticas, principalmente patos, as quais são as repositárias dos vírus na natureza. Nestes animais a infecção é predominantemente entérica e não respiratória, sendo os vírus eliminados pelas fezes em grandes quantidades nas regiões onde os animais se agrupam na natureza, contaminando fortemente as áreas adjacentes. Os vírus podem ainda ser transportados por aves migratórias, levando as amostras virais a locais distantes.

As infecções nestas aves de vida livre são quase sempre brandas, como resultado de um equilíbrio entre os vírus e seus hospedeiros naturais, alcançado ao longo de muitos séculos, e os animais sobrevivem às sucessivas infecções que sofrem ao longo da vida por diferentes amostras. No entanto, ao atingir animais domésticos como aves, suínos e eqüinos, o quadro passa a ser principalmente respiratório. Também se observa uma tendência das amostras de influenza A irem aumentando sua virulência ao longo das semanas e meses após penetrarem em uma área nova, com o que ocorrem epizootias graves em especial em aves domésticas, que podem morrer 24-48 horas após o início dos sintomas.

O homem, como assinalado, pode também ser envolvido neste ciclo da infecção, tendo sido reportadas epidemias pelos subtipos HA1, HA2 e HA3 e NA1 e NA2 e mais raramente infecções por outros subtipos, como H5, como se discute mais adiante. Nos suínos ocorrem normalmente os mesmos tipos do que no homem, exceto HA2. Nos eqüinos foram descritos principalmente os subtipos HA3 e HA7, NA1 e NA2.

No homem se comprovou que a epidemia de 1889 foi causada pelo subtipo H2N2, surgindo então o H1N1 originário de aves e que causou a grande pandemia de 1918-1920; a amostra perdeu grande parte de sua virulência e permaneceu circulando até 1957 quando se iniciou uma nova epidemia na Ásia (amostra H2N2), sendo estes subtipos originários de patos selvagens, causando entre um e quatro milhões de casos fatais no mundo.

Em 1968 um subtipo H3, igualmente originário de aves selvagens, recombinou-se com amostras humanas, surgindo em Hong Kong uma amostra virulenta de composição H3N2 e que causou uma nova pandemia, com cerca de um milhão de casos fatais. Finalmente, em 1977 uma nova amostra H1 N1 foi identificada na Rússia, atingindo principalmente crianças e jovens. Não é claro como surgiu esta amostra, muito semelhante a que causou a grande epidemia de 1918-1920, porém com bem menor patogenicidade. No momento circulam no mundo as amostras H1N1 e H3N2 nas populações humanas.

A infecção de humanos diretamente a partir de aves silvestres também ocorreu com a amostra H5N1 na Ásia. Esta amostra provavelmente surgiu em gansos na China em 1977 e infectou aves domésticas e humanos que tiveram direto contato com as aves, causando a morte de até 100% dos rebanhos atingidos e seis mortes em um total de 18 pessoas infectadas neste primeiro episódio. Em dezembro de 1997 o vírus estava presente em cerca de 20% das aves domésticas de Hong Kong e a eliminação de milhões destas aves em alguns dias provavelmente impediu uma epidemia humana, pois alguns dias após a amostra H3N2 começou a circular na área, com alto risco de ocorrer uma recombinação das amostras, caso ambas estivessem presentes na cidade na mesma ocasião.

A amostra H5N1, porém, não foi eliminada daquela região asiática e ao longo dos anos seguintes sucessivos episódios em aves domésticas ocorreram na China, Tailândia, Camboja, e Vietnã, especialmente em criadouros familiares onde há maior contato com os animais infectados, levando a ocorrência de mais de 100 casos humanos com 51 mortes. Milhões de aves domésticas foram sacrificadas nas tentativas de controlar a infecção, com grandes perdas econômicas.

Transmissões de homem a homem indicando o surgimento de amostras recombinantes de H5N1 adaptadas a infectar facilmente o homem, não foram ainda seguramente confirmadas, embora haja descrições de possíveis transmissões familiares.

Outras amostras aviárias que atingiram ocasionalmente o homem foram uma amostra H7N7, causando conjuntivite e a H9N2 isolada em duas crianças em Hong Kong em março de 1999, com quadro respiratório agudo.

A amostra H5N1 é, no entanto, considerada muito mais grave, pela alta taxa de letalidade em animais e humanos que se infectaram. A Organização Mundial de Saúde recomenda fortemente que todos que têm contato profissional com aves, em especial na Ásia neste momento, se vacinem para evitar as infecções mistas, capazes de gerar amostras de alta virulência adaptadas ao homem.

A vacina e o remédio contra a gripe aviária

Vacinas preparadas com a amostra H5N1 para aves domésticas são de alto custo pelo número de animais que se deve imunizar e a dificuldade logística de se realizar a operação. As vacinas contra influenza são preparadas em ovos embrionados, os quais devem ser livres de agentes patogênicos; a par disso, o processo de preparação da vacina apresenta relativo baixo rendimento, o que encarece o produto final e limita muito as quantidades disponíveis, bem abaixo das demandas necessárias a uma vacinação em larga escala, em caso de epidemias e epizootias. Apesar destes problemas, uma campanha de imunização de 20 milhões de aves está sendo implantada no Vietnam. A vacinação de aves por meio da via respiratória está sendo avaliada. Uma droga aprovada nos EUA (Tamiflu) para controle da infecção, além do seu alto custo, é igualmente de preparo longo e não se prevê uma alta disponibilidade do produto em futuro próximo.

Perspectivas

Todos os dados sobre a amostra H5N1 e sua disseminação em animais e no homem confirmam conhecimentos anteriores de que estas modificações dos vírus da influenza surgem na Ásia e iniciam seu ciclo atingindo humanos em contato direto com os animais e posteriormente a amostra começa a surgir em aves, principalmente migratórias, em outras regiões como já se observou na Indonésia, Mongólia, Rússia, Cazaquistão e Leste Europeu, em um total de 13 países nos últimos meses. Previsões do que vai realmente acontecer em futuro próximo são meros exercícios teóricos, até que, eventualmente, surjam casos humanos por transmissão direta homem a homem, quando o risco de epidemia (e esperemos que não aconteça) passará a ser real. As amostras isoladas destes casos seriam as que deveriam ser usadas para o preparo das vacinas humanas.

Os suínos são igualmente muito sensíveis aos vírus da influenza, com quadros respiratórios graves, além de possuírem a capacidade de se infectar facilmente com amostras humanas e de aves, permitindo o surgimento também nestes animais de amostras recombinantes novas. Como a amostra H5N1 não se comprovou, porém, até o momento, uma participação dos suínos como elos importantes na sua cadeia de transmissão.

Aves migratórias asiáticas não atingem as Américas e não se espera esta via de eventual introdução dos vírus da influenza H5N1. Coletas de aves silvestres migratórias na costa do Brasil, realizadas ao longo de vários meses, não mostraram a presença de vírus da influenza. Casos humanos poderão mais facilmente trazer as amostras ao nosso continente.

Medidas rigorosas de isolamento de locais de produção de aves são essenciais para impedir a entrada de microorganismos patogênicos nestes locais. Mais informações no site da Organização Mundial da Saúde (http://www.who.int) e no especial do Ministério da Saúde (http://dtr2001.saude.gov.br/influenza/principal_gripe.htm).

* Virologista, doutor e pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz.

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