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09/07/2007

Acesso a insumos essenciais depende de políticas interministeriais


Os países menos desenvolvidos concentram 84% da população mundial e representam 93% da carga global de doenças, mas são responsáveis por menos de 11% dos gastos mundiais em saúde. Infelizmente, segundo Jorge Bermudez – ex-diretor da Escola Naciona de Saúde Pública da Fiocruz (2001 a 2004) e ex-chefe da Unidade de Medicamentos Essenciais, Vacinas e Tecnologias de Saúde da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) –, esse quadro de iniqüidade também pode ser identificado nas Américas, onde 1/4 da população não tem acesso permanente aos serviços de saúde, e até mesmo nacionalmente, atingindo grupos populacionais mais vulneráveis. “Isso mostra o quanto é necessário promovermos políticas sociais capazes de expandir essa cobertura e incluir essas populações marginalizadas”, diz Bermudez, reafirmando a importância de se ampliar o acesso da população a insumos de qualidade e a responsabilidade da saúde na promoção da eqüidade social. Na semana passada, Bermudez assumiu a Secretaria Executiva da Unitaid – um fundo internacional para a compra de medicamentos, criado em 2006, por iniciativa do Brasil, Chile, França, Noruega e Reino Unido. Na entrevista a seguir, ele explica em que medida os acordos comerciais podem dificultar a ampliação do acesso das populações aos insumos essenciais, dá exemplos concretos das vitórias já alcançadas no setor e garante que a solução definitiva do problema só será possível quando forem implementadas “políticas interministeriais com metas comuns, claramente enunciadas”.


De que forma os problemas econômicos e sociais refletem na área da saúde?

Jorge Bermudez: Cada vez mais se discute a saúde como resultado de condições de vida em geral, incluindo habitação, renda, emprego e acesso a diversos serviços. Nossos países concentram esforços no combate à pobreza, incluindo, nessa dimensão, o acesso aos serviços de saúde. A exclusão social é marcante na nossa região e isso fica muito claro quando verificamos que 1/4 da população das Américas ainda não tem acesso permanente aos serviços de saúde. Isso mostra o quanto é necessário promovermos políticas sociais capazes de expandir essa cobertura e incluir essas populações marginalizadas.


Esses problemas afetam todos os países – ricos, pobres e em desenvolvimento – na mesma medida?

Bermudez:
Na verdade, se considerarmos a classificação de países do Banco Mundial, a diversidade nas Américas é muito grande, com extremos e com enorme desigualdade e iniqüidade. Entretanto, mesmo nos paises mais ricos, temos áreas de iniqüidade e não podemos dizer que, do ponto de vista da saúde, a totalidade da população se encontra coberta, até porque isso também depende do modelo de proteção social adotado em cada país. Evidentemente, o impacto dos problemas sociais – e também dos econômicos – na área da saúde é mais marcante nos paises em desenvolvimento. A título de ilustração, um dado bastante demonstrativo da iniqüidade que existe em escala mundial é que os países menos desenvolvidos concentram 84% da população mundial, representam 93% da carga global de doença, mas são responsáveis por menos de 11% dos gastos mundiais em saúde.


Não seria utópico acreditar que a saúde é capaz de fomentar a eqüidade social numa região tão cheia de contrastes políticos, econômicos e sociais (Canadá e Haiti, por exemplo, ou mesmo áreas mais ou menos favorecidas dentro dos países)?

Bermudez:
Embora a região das Américas apresente realmente um enorme desequilíbrio, grande iniqüidade e extremos contrastantes, ela também é, do ponto de vista da saúde, a região do mundo que apresenta os avanços mais significativos. Eu considero que um dos grandes desafios que enfrentamos é o de tornar esses avanços irreversíveis ou, como dizemos na Opas, proteger as realizações alcançadas. Nas Américas encontramos as maiores coberturas de atenção integral, por exemplo, para HIV/Aids; altas coberturas de vacinação; e acesso a novas vacinas. Também conseguimos negociar e reduzir os preços de antiretrovirais (AVR) e, hoje, nos preparamos para expandir esses mecanismos a outros medicamentos de relevância. O modelo que busca o acesso universal e considera o direito à saúde como direito de todos e dever do Estado, que o Brasil consagrou na Constituição de 1988 e que outros países também tentam implementar, nos permite acreditar que é possível buscar essa utopia. Na saúde, as assimetrias ficam bem evidentes, o que nos permite trabalhar com a questão da solidariedade para criar modelos inovadores de atenção à saúde e, efetivamente, promover o acesso universal aos serviços e sistemas de saúde.


No editorial da edição de abril de 2007 da revista Cadernos de Saúde Pública, o senhor diz que “O acesso a insumos deve ser considerado no marco de políticas de saúde, de C&T e na política industrial”. Como a saúde tem conseguido lidar com as questões que estão fora de sua governabilidade?

Bermudez:
O acesso a insumos essenciais não pode ser visto apenas sob a ótica da saúde, pois necessariamente temos que considerar a relevância dos segmentos industriais. Podemos então pensar que as políticas que promovem mecanismos e modelos de acesso, bem como a qualidade e segurança dos produtos, como as políticas farmacêuticas (no caso dos medicamentos), devem ter uma relação muito estreita com a política de daúde. Ao mesmo tempo, entretanto, essas políticas também devem estar relacionadas com a política de ciência, tecnologia e inovação, no sentido de permitir a pesquisa e desenvolvimento de novos produtos no mercado, e com a política industrial, que trata dos segmentos produtivos e de sua regulação. Como muitos desses aspectos se encontram efetivamente fora da governabilidade do setor da saúde, é preciso implementar políticas interministeriais com metas comuns, claramente enunciadas.


Como fazer para que as políticas industriais sejam direcionadas para as questões da saúde e não do mercado?

Bermudez:
Um grande desafio consiste em tentar aproximar a efetiva demanda com a oferta e, para isso, um dos instrumentos muito claros que temos é a capacidade de regulação do Estado, com a finalidade de assegurar acesso e qualidade dos produtos presentes no mercado. Quando falamos em insumos essenciais, estamos lidando com produtos, com serviços e com populações, de maneira que é primordial assegurar acesso, qualidade e eqüidade.


Quais os principais pontos da estratégia de cooperação da Opas/OMS para as Américas, mais especificamente no que diz respeito ao fortalecimento dos sistemas nacionais de saúde?

Bermudez: Eu acho importante destacar que essa estratégia é determinada no contexto dos mandatos que o corpo dirigente, em especial o coletivo de ministros da Saúde representados no Conselho Diretivo da Organização, discute e renova anualmente. Atualmente, podemos considerar que ela está centrada num triplo enfoque: (1) resolver a agenda inconclusa, o que representa poder estender mecanismos e iniciativas desenvolvidas a populações marginalizadas e promover políticas inclusivas; (2) proteger as realizações alcançadas, o que implica em assegurar a sustentabilidade de políticas sociais e avanços promovidos, impedindo retrocessos; e (3) enfrentar novos desafios, antecipando problemas emergentes ou reemergentes nas condições de saúde de nossas populações e promovendo a capacitação profissional necessária ao enfrentamento desses problemas.


O que o senhor destaca como vitórias alcançadas?

Bermudez:
Como avanço, eu citaria, na estratégia de proteger as realizações alcançadas, a negociação de preços de ARV – realizada em 2005, em Buenos Aires, Argentina – que colocou 11 ministérios da Saúde (América do Sul e México), organismos internacionais e a sociedade civil frente a frente com 27 companhias farmacêuticas. Esse foro de negociação conseguiu reduções entre 15 e 55% nos menores preços que vinham sendo praticados na região e aumentou potencialmente a capacidade regional de expansão da cobertura com ARV em direção ao acesso universal. Mais do que uma realidade para os 11 países que lideraram essa negociação, os preços acordados têm sido estendidos pelo Fundo Estratégico da Opas/OMS para aquisição de medicamentos para a América Central e o Caribe, mostrando como é possível promover um melhor acesso a medicamentos. Outros exemplos de avanços coletivos são os planos e estratégias regionais que estão sendo discutidas e implementadas, como as de segurança do sangue, HIV/Aids, doenças não transmissíveis (DNTs), doenças negligenciadas, nutrição e exercício físico, entre outras.


E como grandes dificuldades a serem superadas?

Bermudez:
Entre as dificuldades que temos a superar, podemos incluir a capacidade de resposta à introdução de novos produtos e tecnologias, como a terapia gênica, a biotecnologia, a genômica, a proteômica e os mecanismos de regulação sanitária. O fortalecimento da capacidade de regulação nas Américas tem sido um objetivo central nas discussões no âmbito da Rede Pan-Americana de Harmonização da Regulamentação Farmacêutica (Rede Parf ou, do inglês, Rede Pandrha), que congrega todas as autoridades e agências reguladoras dos nossos paises, junto com outros atores relevante.


Em que medida os novos marcos regulatórios impostos aos países da região na negociação de tratados de livre comércio (TLC) são mais restritivos que os acordos assinados na OMC, em especial o Acordo Trips? Pode dar um exemplo disso?

Bermudez:
A partir de abril de 1994, encerrada a denominada Rodada Uruguai, mais longa e complexa rodada de negociação relacionada com comércio internacional, foi criada a Organização Mundial do Comercio (OMC) e o Acordo sobre Aspectos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio ou acordo Trips (do inglês, Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights). O Trips, ao mesmo tempo que estabelece uma série de obrigações aos Estados Membros da OMC, também determina uma série de flexibilidades, dentre as quais as Licenças Compulsórias, conhecidas como "quebra de patentes", é as importações paralelas. O acordo Trips levou todos os paises a modificarem suas leis de propriedade intelectual, assegurando proteção patentária por um período de 20 anos. Trazer a questão da propriedade intelectual para o campo da saúde pública tem sido um exercício bastante difícil nos últimos dez anos. Os conceitos e a dinâmica da propriedade intelectual eram assuntos limitados à esfera de advogados, juristas, economistas e diplomatas. Entretanto, a partir da percepção das implicações da propriedade intelectual, em especial dos monopólios conferidos por patentes farmacêuticas, no acesso aos medicamentos, esse assunto passou a fazer parte dos debates presentes na agenda da saúde.


A OMS vem debatendo este assunto desde que aprovou a Resolução sobre Estratégia Revisada de Medicamentos, na Assembléia Mundial da Saúde em 1999. O tema tem sido permanentemente objeto nos debates das assembléias mundiais da saúde e em outros foros globais ou regionais, nos quais o Brasil tem desempenhado um papel altamente relevante. Diversos paises incorporaram as flexibilidades do acordo Trips nos seus marcos legais. Entretanto, a utilização dessas flexibilidades tem sido extremamente difícil, especialmente por pressões políticas. Mais recentemente, tratados de livre comércio (TLC) de âmbito bilateral ou regional têm imposto aos paises signatários restrições que se convencionaram denominar Trips-plus, por serem mais restritivos do que o acordo Trips, na medida em que se superpõem aos marcos regulatórios dos países. Cabe destacar que todos os TLC recentemente discutidos, negociados ou ratificados, entre os quais podemos mencionar DR-Cafta (EUA e os países da América Central e República Dominicana), EUA com Colômbia, Equador e Peru, assim como TLCs em outras regiões do mundo, podem ser considerados Trips-plus.


Se imaginarmos a saúde como Dom Quixote, podemos dizer que os acordos comerciais são moinhos contra os quais o setor tem que lutar eternamente?

Bermudez:
Eu não faria a analogia de Dom Quixote e os moinhos de vento, pois podemos evidenciar avanços concretos nessa área e esperamos que os paises em desenvolvimento possam efetivamente utilizar as flexibilidades do acordo Trips. Recentemente, houve casos de licenciamento compulsório de ARV em Moçambique, na Malásia, na Indonésia e na Tailândia. O Brasil, por sua vez, também deu o primeiro passo em direção à concessão de licença compulsória para uso público não-comercial do produto Efavirenz, da Merck Sharp & Dohme, quando a Portaria 886, que declara de interesse público os direitos de patente do medicamento, foi publicada no Diário Oficial da União. É importante lembrar que todas essas iniciativas e as flexibilidades do Trips são utilizadas por países desenvolvidos e são mecanismos que respeitam convenções internacionais e encontram respaldo político na Declaração de Doha – Declaração Ministerial sobre o Acordo Trips e a Saúde Pública –, assinada no âmbito da OMC, em 2001. Na declaração, os países reconhecem a gravidade dos problemas de saúde pública que afligem os países em desenvolvimento e concordam em que o Trips “não impede e não deve impedir que os países membros adotem medidas de proteção à saúde pública”.


Como organização internacional, a Opas fala na necessidade de se pensar coletivamente para melhorar as condições de saúde das populações, mas será que é possível pensar coletivamente num quadro em que os interesses nacionais e as ideologias (inclusive as que concebem e orientam as políticas e sistemas de saúde) são tão diferentes?

Bermudez:
Efetivamente, nossa região é heterogênea e as soluções não podem ser uniformes. Entretanto, cada vez mais assistimos a declarações coletivas feitas nos mais variados foros, entre os quais destacamos a Assembléia Mundial da Saúde, as Nações Unidas, as cúpulas de presidentes e chefes de Estado. A Declaração de Doha, que acabamos de mencionar, é um exemplo marcante de que países heterogêneos, e nesse caso os ministros de Comércio, podem emitir consensos relacionados com a defesa da saúde pública. Podemos pensar na saúde como mecanismo capaz de superar ideologias e lutar pela melhoria das condições de vida das nossas populações. Claro que não podemos ser ingênuos e pensar que os interesses nacionais, ou aqueles assim expressos, não estarão presentes em todas as discussões, mas a luta pela melhoria nas condições de saúde é uma bandeira que unifica diversas correntes e permite avançar, com mais facilidade do que em outras áreas do conhecimento. Por outro lado, fica cada vez mais claro que as doenças não reconhecem fronteiras e as grandes conquistas no campo da saúde, como foram a erradicação da varíola e da poliomielite, somente foram possíveis graças a um esforço global e sem limites quanto a ações expandidas e conjuntas.


Fonte: Informe Ensp

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