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15/10/2019

A ameaça da baixa cobertura vacinal pelo SUS

Akira Homma e Cristina Possas*


Vivemos no campo das vacinas, uma era de rápidas transformações e inovações tecnológicas disruptivas na transição para a vacinologia 4.0 e 5.0, que merecem profunda reflexão. Diante deste cenário, providências urgentes são necessárias em nosso país para fortalecer a capacidade tecnológica nacional em vacinas e, ao mesmo tempo, reverter o atual grave quadro de baixa cobertura vacinal das principais doenças infecciosas na quase totalidade dos estados brasileiros.

"As numerosas conquistas da saúde pública demonstram cabalmente a enorme importância e protagonismo das vacinas e vacinações na prevenção das doenças e aumento da qualidade de vida do povo brasileiro" (foto: Peter Ilicciev)

 

Em um cenário global marcado pelos crescentes temores dos cientistas de que possamos ser expostos a novas pandemias de doenças emergentes e reemergentes (como a influenza, a gripe suína, as arboviroses, favorecidas por grandes concentrações populacionais, aumento do fluxo aéreo, mobilidade populacional, mudança climática, entre outros, que venham vitimar dezenas ou mesmo centenas de milhões de pessoas em todo o mundo, a exemplo da gripe espanhola no princípio do século passado), é muito preocupante o expressivo declínio observado na cobertura vacinal no país em crianças e adultos. As numerosas conquistas da saúde pública, como a erradicação da varíola, a eliminação da poliomielite, sarampo, rubéola e a redução expressiva da notificação das doenças imunopreveníveis na saúde pública brasileira, demonstram cabalmente a enorme importância e protagonismo das vacinas e vacinações na prevenção das doenças e aumento da qualidade de vida do povo brasileiro e mundial.

As novas vacinas inovadoras e com menos eventos adversos vêm crescendo exponencialmente no mercado farmacêutico e são reconhecidas como de enorme importância na prevenção das doenças e ação terapêutica, tendo como alvo o câncer e outras doenças crônico-degenerativas. O Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) vem buscando fortalecer a sua competência tecnológica no desenvolvimento e internalização de tecnologias de produção no país de várias destas vacinas preventivas e terapêuticas.

Em contraste com estes expressivos avanços na inovação em vacinas e imunoterapias, os especialistas, as instituições responsáveis pela vacinação e a imprensa vêm alertando nos últimos anos para o fenômeno aqui relatado de surpreendente queda nos indicadores de cobertura vacinal no Brasil. A epidemia da febre amarela, com milhares de casos e centenas de mortes, majoritariamente de não-vacinados; o sarampo em Roraima, Rondônia, Amazonas e Mato Grosso do Sul, iniciado com a entrada de refugiados venezuelanos infectados, em fuga do governo do seu país, disseminando a virose na Região Norte e causando muitos casos de sarampo, que acabaram se disseminando por todo o país. Esta rápida disseminação nacional do sarampo foi favorecida pela baixa cobertura da vacina, e outros fatores, como a queda de imunidade, que acabou levando à séria ameaça de retorno da doença ao Brasil.

Apesar de estarmos muito próximos de uma nova conquista da Humanidade — a erradicação global da poliomielite —, fenômenos surpreendentes como a importante queda de cobertura vacinal contra a pólio no país e os baixíssimos índices de cobertura vacinal para várias doenças infecciosas, inclusive poliomielite são ameaças tangíveis à população brasileira. Dados da Coordenação Geral do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde indicam que as coberturas vacinais no país, estados e parcela dos municípios estão decrescendo significativamente, atingindo índices muito abaixo da meta estabelecida para cada vacina, com queda acentuada nos últimos três anos para a maioria das vacinas. A queda nas coberturas vacinais para doenças já eliminadas como sarampo, rubéola e poliomielite, ou já controladas, a exemplo da difteria e da coqueluche, expõe a população ao risco de adoecimento. Os dados recentes do ano de 2018 já indicavam menos de 45% dos municípios brasileiros com cobertura vacinal adequada em crianças com menos de 1 ano e só 65% dos municípios com cobertura vacinal adequada para febre amarela, com 312 cidades com cobertura vacinal abaixo de 50%, quando a recomendação é de 95% de cobertura (dados de 2018 do Ministério da Saúde).

Embora diversos fatores devam ser considerados e tenham sido referidos pelas autoridades para explicar o declínio na cobertura vacinal, como a mudança do registro da imunização para registro nominal, problemas na qualidade da rede de serviços e receio pela sociedade de efeitos adversos da imunização, a verdade é que os indicadores oficiais apontam para um claro declínio na imunização de crianças, adolescentes e adultos, que precisa com urgência ser adequadamente investigado, com maior precisão nos dados.

O fenômeno global da “recusa à vacinação”, observado também em países desenvolvidos, favorecido por fake news disseminadas pelas redes sociais com exacerbação dos efeitos adversos das vacinas, como “vacina provoca autismo”, “vacina leva a problemas neurológicos”, “vacina causa doença”, “a vacinação enfraquece o sistema imunológico” etc; a dificuldade de acesso à vacinação; a falta de vacinas em algumas oportunidades; a inexistência do conhecimento pelos mais jovens e a perda de memória pelos adultos, das graves consequências destas doenças preveníveis pelas vacinas, além de outras causas, são apontados como fatores que contribuiriam para a baixa cobertura vacinal (Possas, Homma et al 2019).

É preciso, nesse novo cenário epidemiológico de baixa frequência de doenças que anteriormente assombravam as famílias, como poliomielite, sarampo, coqueluche, difteria, tétano, meningite meningocócica, entre outras, formas mais efetivas de comunicação e outras medidas, como o envolvimento de toda sociedade para o novo despertar para a importância da vacinação, além da responsabilização de todos os envolvidos nas atividades de imunização.

Uma revisão das atuais estratégias de comunicação sobre vacinas é necessária e urgente. Deve-se buscar maior impacto emocional da informação em saúde na população-alvo, além da divulgação permanente nos meios de comunicação de massa sobre as vacinas, sua importância e baixa frequência de efeitos adversos, em contraste com as complicações graves ou fatais das doenças. E a comunicação social precisa de alianças, como o Unicef, sociedades médicas, entidades privadas como o Rotary e emissoras de TV e rádio. Precisa ser menos burocrática, menos centrada no próprio governo, atingir mais o lado emocional das pessoas. O envolvimento e a participação da sociedade organizada como um todo são fundamentais.

Nas décadas anteriores, a população brasileira aderiu maciçamente ao Programa Nacional de Imunizações, internacionalmente reconhecido como um modelo muito bem-sucedido e com elevada adesão social. Portanto, esta mudança de comportamento da sociedade requer uma avaliação mais profunda e precisa de cada fator envolvido nesta resposta social de suposta recusa à imunização, que requer, de forma urgente, uma resposta específica e eficaz do poder público.

Na perspectiva do desenvolvimento sustentável (GAVI, 2018; Possas, Homma et al.2019), torna-se premente considerar o impacto econômico e social da baixa cobertura vacinal. Estudos internacionais realizados em 73 países indicam que poderá ser daqui para a frente gigantesco o impacto econômico e social da não-vacinação, se esta tendência global persistir. Nos últimos 20 anos, a expressiva ampliação da cobertura vacinal possibilitou aos países uma redução de 20 milhões de mortes e uma economia de cerca de US$ 350 bilhões somente com serviços de saúde. Além disto, se considerados o impacto a longo prazo para a economia e para a sociedade de qualidade de vida mais longa e saudável, o impacto econômico da vacinação será da ordem de US$ 820 bilhões (Osawa et al 2017). Estes dados mostram que vacinação é uma atividade de alto impacto econômico e social e não é gasto e sim investimento, alertando para a importância de urgente reversão dos expressivos cortes governamentais no orçamento destinado a vacinas e imunizações no Brasil.

Os atuais surtos de doenças imunopreveníveis no país estão revelando “buracos” de imunização: populações rurais, populações indígenas, populações mais pobres nas periferias das cidades, migrantes. Nesse último caso, é preciso estabelecer uma vacinação mais precoce dos migrantes.

É imprescindível reforço na vigilância epidemiológica em todo o país, para que se possa detectar o mais precocemente possível a ocorrência de casos de doenças evitáveis por vacinação. Há necessidade também de inquéritos para saber os motivos reais da não-vacinação. Por oportuno, é importante destacar a acentuada deterioração do SUS nas últimas décadas, que vem contribuindo de forma significativa para o declínio da cobertura vacinal, refletindo-se na queda na qualidade dos serviços locais de imunização.

Na vacinação, ainda que a proteção seja individual, a busca de níveis constantes de alta cobertura vacinal de toda população é crucial para se alcançar a proteção coletiva e assegurar o bem-estar da população. Sendo um tema de alta relevância para a saúde de toda população, o binômio vacinas e vacinação deveria ser parte do currículo nas escolas primárias, secundárias e do ensino superior.

Esta dimensão coletiva da proteção vacinal impõe a busca da confiança e do convencimento da importância da vacinação por toda população e requer urgente aprimoramento dos sistemas de informação sobre imunizações e a importância da cobertura vacinal, a necessidade de revisão das estratégias nacionais de coordenação e de gestão local dos serviços e salas de imunização.

Para assegurar estratégias nacionais de coordenação mais eficazes, é necessária uma reflexão sobre a estrutura e a organização institucional do SUS na Constituição de 1988 no campo da saúde pública e das vacinas. O PNI, apesar do seu histórico dinamismo, fica com sua capacidade de coordenação limitada, de mãos atadas, especialmente neste momento de crise do SUS, em um sistema altamente descentralizado na execução finalística da imunização, o que em termos de saúde pública coloca sérios problemas e deve ser revisto. A atual organização institucional do PNI precisa portanto ser revista, especialmente no grave cenário atual de alto potencial de pandemias de doenças emergentes e reemergentes, o que impõe respostas imediatas e que se repense a sua atual estrutura, restaurando sua verticalização.

Finalmente, esta estratégia nacional de imunizações deverá ser integrada em um sistema global eficiente de preparedness. Esta questão é da maior relevância e foi recentemente destacada pela Organização Mundial da Saúde, mostrando que entre 2011 e 2018, houve um crescimento e rápida propagação de surtos epidêmicos, constatando-se no período 1.483 surtos epidêmicos em 172 países. Estamos, portanto, vivendo numa nova era de rápida disseminação global de epidemias de ebola, Sars, Mers, zika, dengue, febre amarela, chikungunya e outras. Diante da gravidade deste quadro, é necessário implantar com urgência uma estrutura coordenada e estratégica com alta capacidade de mobilização e controle, articulando PD&I de vacinas, vacinações, vigilância epidemiológica e laboratorial, apoiada por um sistema ágil e preciso de informação, evitando desta forma epidemias que se vislumbram perigosamente no horizonte.

*Akira Homma e Cristina Possas são assessores científicos do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz).

Agradecimentos: os autores agradecem, In memoriam, a valiosa contribuição de Reinaldo de Menezes Martins, fez algumas das reflexões que geraram este artigo.

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