“As epidemias são tão certas como a morte e os impostos”. Com esta frase, no início da década de 1980, o virologista norte-americano Richard Krause constatou a persistência das doenças infecciosas que, em sua visão, representavam uma ameaça a todos os países, independentemente de grau de desenvolvimento econômico e condições sanitárias. Pouco antes do impacto da epidemia de Aids, perspectivas como a do virologista colocavam em xeque uma das crenças dominantes na saúde pública da segunda metade do século 20, caracterizada pelo prognóstico da eliminação daquelas doenças como decorrência da afluência, da urbanização e dos avanços da medicina, particularmente pelo desenvolvimento de antibióticos e novas vacinas. Mas seriam as epidemias uma fatalidade, uma vitória de Nêmesis, a deusa grega da vingança, tal como nos lembra Philip Roth em seu vigoroso romance sobre as relações entre a epidemia de poliomielite e a 2ª Guerra Mundial nos EUA?
"O desenvolvimento de vacinas e de estratégias globais de imunização contra enfermidades altamente infecciosas é amplamente reconhecido como uma das mais efetivas estratégias de saúde pública" (foto: Peter Ilicciev)
Na atualidade o que se verifica é uma profunda mudança nas relações entre espaço, tempo e doenças infecciosas. O mundo tornou-se mais vulnerável à erupção e à propagação global tanto de doenças antigas como novas. O grande aumento de circulação de pessoas e mercadorias e, sobretudo, problemas ambientais, causados por fatores como desflorestamento e mudanças climáticas, são a força motriz do que muitos cientistas denominam a globalização da doença. Diante desse quadro, torna-se ainda mais necessário o desenvolvimento de políticas públicas com uma visão abrangente sobre a saúde e o apoio a atividades de ciência, desenvolvimento tecnológico e inovação. E um dos mais poderosos instrumentos para políticas públicas de saúde é, sem dúvida, o desenvolvimento de vacinas.
O desenvolvimento de vacinas e de estratégias globais de imunização contra enfermidades altamente infecciosas é amplamente reconhecido como uma das mais efetivas estratégias de saúde pública. Evidências indicam que, nos últimos 50 anos, a vacinação foi responsável por salvar mais vidas do que qualquer outro produto ou procedimento médico. Este fato nos interpela a clamar por ampla consciência social diante de movimentos de resistência à vacinação que, além da atitude anticientífica, colocam em risco a saúde coletiva. Conforme resolução da Organização Mundial de Saúde, a vacinação é um componente essencial do direito à saúde, uma responsabilidade individual, comunitária, social e governamental.
No Brasil, as ações sistemáticas de vacinação, estabelecidas a partir da criação, em 1973, do Programa Nacional de Imunizações (PNI), ajudaram a erradicar a poliomielite e a reduzir a incidência de outros agravos, como sarampo a coqueluche, o tétano, a difteria e a tuberculose. Ao mesmo tempo, o risco de desabastecimento gerado pelo desinteresse do setor privado pelo mercado de vacinas no Brasil, cuja regulação tornou-se próxima a padrões internacionais, levou à criação do Programa de Autossuficiência em Imunobiológicos (Pasni) em 1985, experiência precursora para o desenvolvimento do Complexo Econômico da Saúde. Este se caracteriza pela articulação entre as dimensões social, especialmente a garantia de acesso, e econômica, reconhecendo-se as falhas de mercado como um elemento central na esfera da produção. Entre as instituições públicas, aquelas que dinamizaram seu potencial para a área de produção foram a Fiocruz, através do laboratório público Bio-Manguinhos, e o Instituto Butantan, atualizando o papel que exercem há 120 anos, quando foram criadas em resposta à crise sanitária do início do século 20. Nos últimos 10 anos, Bio-Manguinhos/Fiocruz e Butantan foram responsáveis por mais da metade do número de doses fornecidas pelo PNI.
Todos os avanços alcançados requerem para sua preservação e para que o país não perca todo o esforço dispendido, uma ação efetiva no campo da Ciência, Tecnologia e Inovação voltada para o desenvolvimento de novas vacinas, ao mesmo tempo em que se evite a exclusão de populações negligenciadas pelo progresso científico e tecnológico nessa área. Esse necessário esforço, no contexto da 4ª Revolução Tecnológica, torna imprescindível o apoio de políticas públicas de saúde e de C&T&I ao desenvolvimento científico e tecnológico relativo à imunologia.
Até pouco tempo, não se considerava factível o desenvolvimento de vacinas para a prevenção de algumas doenças negligenciadas. Hoje no Brasil temos iniciativas capitaneadas por instituições brasileiras como são os casos das vacinas para esquistossomose, leishmaniose e zika pela Fiocruz e vacina para dengue pelo Instituto Butantan. Além destes projetos liderados por instituições brasileiras, muitas parcerias com institutos internacionais para avaliação co-desenvolvimento e validação de vacinas estão em andamento para doenças como hanseníase, tuberculose, chikungunya entre outras.
Nos últimos anos a imunoterapia tem tido avanços significativos com o desenvolvimento de novas e disruptivas tecnologias que possibilitam direcionar uma resposta profilática e terapêutica do sistema imune a diferentes situações patológicas. Vale salientar que estes novos conhecimentos estão sendo utilizados não apenas para o enfrentamento das doenças infectocontagiosas, mas também para doenças como o câncer e doenças autoimunes.
A base científica instalada, o papel dos laboratórios públicos nacionais e a capacidade histórica de formulação e implementação de políticas públicas adequadas, constituem fatores chave para o desenvolvimento soberano do país no campo das vacinas. A partir do conjunto de questões aqui enunciadas, a Fiocruz, através de seu Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), irá sediar, de 21 a 23 de outubro deste ano, o 20º Encontro Anual da rede de produtores de vacina dos países em desenvolvimento – Developing Countries Vaccines Manufactures Network (DCVMN). Trata-se de uma iniciativa que visa reduzir as assimetrias globais e é essencial para a garantia do acesso universal à imunização. Em um contexto no qual a monopolização dos mercados pode tornar inacessível à maioria da população novas tecnologias nesse campo, cabe-nos afirmar a vacinação como um bem público e uma das principais conquistas para o direito de todos ao cuidado e à prevenção.
*Nísia Trindade Lima é presidente da Fiocruz.
Texto originalmente publicado na Folha de S. Paulo (15/10/2019).