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30/08/2012

Apesar de centralizada, federação brasileira permite aos governos locais inovarem na execução de políticas públicas

Fernanda Marques


As primeiras avaliações após a Constituição de 1988 foram de que a federação brasileira – União, estados e municípios –, operando de forma descentralizada, fortaleceria a democracia. Passada a euforia inicial, emergiram as críticas, segundo as quais essa descentralização poderia, ao contrário, funcionar como um obstáculo à democracia, pois a autonomia de estados e municípios dificultaria ações unificadas, gerando desequilíbrios entre as unidades constituintes. Em seu livro Democracia, federalismo e centralização no Brasil, com base em evidências empíricas de longas séries históricas e informações abrangentes, a cientista política Marta Arretche discorda das duas abordagens anteriores e apresenta uma nova leitura: o sistema federativo brasileiro é bastante centralizado, o que não deve ser confundido com ausência de mecanismos de frear a influência do governo central – apesar da forte presença da União, estados e municípios são atores relevantes na formulação e implementação de políticas públicas.






“A presente investigação parte do pressuposto teórico de que Estados federativos não produzem necessariamente dispersão da autoridade política”, adianta Marta. “O livro sustenta que, ao longo do século 20, a federação brasileira tornou-se altamente integrada, ainda que cada nível de governo seja dotado de autoridade política própria. O processo de construção do estado nacional operou no sentido da centralização da autoridade política”, completa. A pesquisa que originou o livro analisou duas dimensões: o poder de veto das unidades constituintes nas arenas decisórias centrais e a autonomia dos governos subnacionais para decidir sobre suas próprias políticas.



Para estudar a primeira dimensão, Marta examinou os processos decisórios na Câmara dos Deputados e no Senado. A autora demonstrou que a União tem ampla autoridade legislativa: pode iniciar legislação em qualquer área de política. Mais do que isso: o escopo de iniciativas legislativas exclusivas da União é vasto. Em várias áreas, tanto a União como as unidades constituintes podem iniciar legislação, mas as normas da primeira prevalecem sobre as das últimas. “O governo federal pode iniciar legislação em praticamente qualquer área de política, ao passo que os governos subnacionais não têm competências legislativas exclusivas. Portanto, o governo federal conta com autoridade regulatória para influir decisivamente na agenda política dos governos subnacionais”, afirma a pesquisadora.



Além disso, o poder de veto das unidades constituintes se mostra bem limitado. O "jogo" começa e termina no Congresso: portanto, as oportunidades institucionais de veto são reduzidas. Não há uma multiplicidade de pontos de veto que uma iniciativa legislativa da União precise obter para aprovação de medidas que afetam os interesses de estados e municípios. Interesses regionais poderiam ter maior peso nas decisões tomadas em Brasília caso as bancadas estaduais no Congresso votassem de modo coeso, em defesa de tais interesses. Na prática, porém, as votações não ocorrem dessa forma: os parlamentares não se organizam segundo suas particularidades regionais, mas de acordo com seu pertencimento a partidos políticos.



Já no estudo da segunda dimensão, a autora se debruçou sobre as políticas e os gastos dos governos municipais em todas as áreas que afetam a provisão de serviços sociais aos cidadãos. No Brasil, os governos locais são os principais provedores das políticas de saúde básica, educação fundamental, coleta de lixo, transporte público e infraestrutura urbana. E, para executá-las, os municípios contam, sobretudo, com recursos constitucionalmente transferidos pelo governo federal. São transferências que não dependem de negociações políticas nem de alinhamento partidário, e que operam no sentido de reduzir as desigualdades de receita entre as unidades constituintes. Contudo, o governo central, com base em seu poder de gasto, tem recursos para produzir incentivos de modo que os governos locais se alinhem à agenda política federal e, dessa forma, exerce importante papel de regulação das políticas executadas pelos governos municipais. Longe de um governo central fraco, tal como formulado pela interpretação tradicional acerca do federalismo brasileiro, o estudo de Marta Arretche revela um governo central forte, com capacidade de pautar a agenda de políticas públicas dos governos subnacionais, seja por seu papel redistributivo, seja por sua autoridade para regular e supervisionar as políticas.



Mas essa influência da União não significa que as demandas próprias das unidades constituintes não importam para a formulação das políticas públicas. “Incorporar tais demandas ao desenho de propostas de legislação é um elemento importante das negociações parlamentares”, destaca Marta. Além disso, posteriormente, já nas fases de implementação e execução das políticas, a autonomia de estados e municípios pode gerar interferências em relação ao governo central. “Governos subnacionais podem acrescentar novas ações aos padrões estabelecidos pelo governo federal. Podem ainda lançar suas próprias inovações”, comenta a autora. Nesse aspecto, programas bem-sucedidos no plano local tendem a ganhar dimensões nacionais ao serem incorporados à agenda do governo federal. “A União é forte em sua capacidade de regular programas nacionais que são executados de modo descentralizado, ao passo que os governos municipais têm progressivamente fortalecida sua capacidade institucional de executar políticas. Ambos os níveis são fortes, porém em diferentes dimensões da produção de políticas públicas”, conclui a cientista política.


Publicado em 29/8/2012.

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