Início do conteúdo

27/01/2012

Artigo aborda o ensino de parteiras no campo em meados do século 20

Renata Moehlecke


Nas décadas de 1940 a 1960, no Brasil, o Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp) dedicou particular atenção à realização de programas de higiene pré-natal e da criança, com a finalidade de auxiliar o trabalho de parteiras em comunidades rurais de todo o país. Para compreender melhor como se deu esse processo de tentativa de organização de serviços de partos em domicílio, a pesquisadora Tânia de Almeida Silva, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), e o historiador Luiz Otávio Ferreira, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), resolveram investigar registros históricos das ações de treinamento e controle de parteiras curiosas promovidas pelo Sesp. O estudo foi publicado em artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde - Manguinhos da Fiocruz.


 Demonstração às parteiras, no curso para visitadoras sanitárias, em Santarém (PA), nos anos 40

Demonstração às parteiras, no curso para visitadoras sanitárias, em Santarém (PA), nos anos 40


“Para os sanitaristas, o treinamento e controle das parteiras curiosas atuantes nas comunidades rurais brasileiras eram importantes para o sucesso do projeto de implantação de serviços sanitários locais de assistência materno-infantil”, explicam os pesquisadores. “Ao atuar diretamente junto às parteiras curiosas, pretendia-se não somente lhe impor rigorosos padrões higiênicos na realização de partos e nos cuidados com recém-nascidos, mas, sobretudo, recorrer a sua influência e seu prestígio naquelas comunidades para popularizar ações de saneamento”.


De acordo com os estudiosos, as equipes de ensino do Sesp eram, em geral, formadas por dois tipos de profissionais: uma enfermeira e um médico. Os treinamentos incluíam demonstrações práticas, debate em grupo, exibição de filmes e observação de atendimentos. A frequência regular às sessões de instrução e o bom desempenho nas aulas garantiam como bônus, inclusive, a obtenção de uma bolsa com material esterilizado voltado para cuidados no parto. Após o curso, as parteiras passavam a ser vinculadas a uma unidade de saúde e ficavam sob supervisão contínua.


“Na verdade, as parteiras, mesmo depois de treinadas, continuavam a atuar como praticantes de um ofício popular de cura, típico do estilo de vida das pequenas comunidades interioranas”, comentam os pesquisadores. Essa resistência constituía um obstáculo, pois a não adesão às práticas ensinadas era vista como prejudicial à saúde da mãe e do bebê. “Atribuía-se à cultura popular, considerada fonte de ‘ignorância e maus hábitos’, a responsabilidade pelos problemas de saúde do povo. Supunha-se que a educação sanitária, como pratica técnica e científica voltada para a disseminação de valores e hábitos higiênicos, fosse capaz de transformar os costumes das populações melhorando sua qualidade de vida e saúde”, comentam os estudiosos.


Um dos mais criticados tratamentos efetuados pelas parteiras era unção do coto umbilical do recém-nascido com cinzas obtidas de um preparado à base de ervas. “O apego das parteiras a esse tipo de prática, fundamentado em crenças e tradições populares, era constantemente combatido pelos profissionais sanitários, durantes os encontros para fins educativos oferecidos às curiosas”, destacam os pesquisadores. Outro exemplo de conflito tinha relação com a posição adotada pela mãe no momento do nascimento. “Para a ciência obstétrica, a mulher deveria estar em posição horizontal, deitada de costas na cama, ao passo que, de acordo com o conhecimento da parteira, a parturiente deveria estar em posição vertical, sentada num banco ou cadeira apropriada à situação”.


Os estudiosos ainda apontam que, para ganhar a confiança das parteiras, era necessário aos sanitaristas conhecer seu sistema de crenças e práticas para somente depois modifica-lo segundo seus próprios padrões. “Naquele contexto, as curiosas eram vistas como um grupo social que estorvava o caminho das ações sanitárias. Não obstante, não deveriam ser combatidas frontalmente, e sim convertidas em aliadas para que, na medida do possível, a instituição usufruísse de seu prestígio e sua influência junto às comunidades. Com isso, pretendia-se viabilizar a educação sanitária das populações rurais do país e, ao mesmo tempo, transformar sua tradicional prestação de cuidados em saúde numa ação sanitária, o que não deixa de significar um modo de exercer controle sobre o grupo”, concluem os pesquisadores.


Publicado em 25/1/2012.

Voltar ao topo Voltar