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09/05/2008

Artigo aborda sexualidade dos jovens com espinha bífida

Fernanda Marques


A sexualidade dos jovens com deficiência física, em particular dos que são portadores de espinha bífida, foi tema de um artigo publicado no início deste ano por pesquisadoras da Fiocruz no periódico Ciência & Saúde Coletiva. O trabalho destaca o direito de todos à sexualidade e as dificuldades enfrentadas por estes jovens, que têm suas possibilidades sexuais desconsideradas por seus familiares e também por profissionais de saúde. As pesquisadoras entrevistaram adolescentes com espinha bífida no Brasil e nos Estados Unidos e, no discurso deles, constataram problemas relacionados ao preconceito e à insegurança. Em entrevista à Agência Fiocruz de Notícias (AFN), uma das autoras do estudo, a psicóloga Ana Helena Rotta Soares, do Instituto Fernandes Figueira (IFF), explica o que é espinha bífida, analisa como ela interfere nas experiências de vida dos adolescentes e propõe medidas, especialmente no campo da informação, para que estes jovens possam usufruir integralmente de seus direitos.


 Ana Helena: No discurso dos jovens entrevistados foi constatada uma carência referente às discussões sobre sexualidade e deficiência física dentro das famílias e também no âmbito dos serviços de saúde

Ana Helena: No discurso dos jovens entrevistados foi constatada uma carência referente às discussões sobre sexualidade e deficiência física dentro das famílias e também no âmbito dos serviços de saúde


AFN: O que é espinha bífida?


Ana Helena: A espinha bífida está entre as mais graves malformações congênitas compatíveis com a vida, além de ser a malformação anatômica do Sistema Nervoso Central mais freqüente em pediatria. Trata-se de um defeito congênito caracterizado por formação incompleta da medula espinhal e das estruturas que protegem a medula. O defeito ocorre no primeiro mês de gravidez e engloba uma série de tipos de malformações.


A doença está associada, ainda, a vários níveis de alterações neurológicas, deformidade e alteração de sensibilidade dos membros inferiores, alteração da bexiga com perda ou retenção da urina e alteração no funcionamento do intestino. Contudo, diversos estudos comprovam que as habilidades intelectuais dos portadores da doença se encontram dentro da normalidade.


AFN: Quais as causas da espinha bífida? Ela pode ser evitada?


Ana Helena: A doença está classificada como uma disfunção multifatorial ou poligênica, ou seja, a causa pode ser atribuída a múltiplos genes ou à interação de fatores genéticos e ambientais. A incidência de defeitos do tubo neural, como a espinha bífida, é reduzida em até 70% pela ingestão diária de ácido fólico antes da concepção e nos primeiros meses de gravidez. 


AFN: Qual a prevalência da espinha bífida no Brasil?


Ana Helena: Estudos epidemiológicos apontam para uma incidência variável da doença em diferentes partes do mundo. No Brasil, em 2003, o Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas (ECLAMC) indicou uma prevalência de cerca de dois casos em cada mil nascidos vivos em Minas Gerais.


AFN: Você entrevistou jovens portadores de espinha bífida no Brasil e nos Estados Unidos. Quais as semelhanças e diferenças entre os dois países?


Ana Helena: Devido à singularidade da espinha bífida no que se refere às complicações miccionais, a sexualidade se faz presente na vida desses jovens desde muito cedo, em função dos cuidados que a doença requer. Em ambas as culturas, observamos que as visões errôneas sobre o cateterismo urinário e a participação dos pais nestes cuidados são reproduzidas pelos jovens, podendo contribuir com uma visão estigmatizante do portador de deficiência em relação a sua própria sexualidade.


Ambas as culturas demonstram que, devido aos exigentes padrões de beleza da atualidade, a imperfeição estética do portador de deficiência se torna ainda mais visível e menos aceitável. Conseqüentemente, a dinâmica de padrões e cobranças em relação ao corpo gera uma imagem do deficiente como incapaz não apenas de se enquadrar na sociedade, mas também de se engajar em um relacionamento amoroso ou de inspirar interesse do sexo oposto.


No caso dos Estados Unidos, em particular, existe um discurso social excessivo no qual prevalece uma visão de alerta, de antecipação da fragilidade ou da vulnerabilidade da mulher deficiente. Este discurso reforça e reproduz a lógica de preconceito em relação ao portador de deficiência dentro do universo sexual e erótico: percebe-se a mulher deficiente como instrumento apenas de violência e exploração e nunca de desejo e prazer.  


AFN: Então, por parte da família e da sociedade, há os mecanismos de repressão da sexualidade dos jovens portadores de deficiência física. E por parte destes jovens, também existe um sentimento de inferioridade e um comportamento de auto-censura em relação ao corpo e à sexualidade?


Ana Helena: A postura de repressão do corpo e da sexualidade dos "diferentes" transforma o portador de deficiência física em um instrumento que incorpora a visão segundo a qual sua sexualidade precisa ser subordinada e disciplinada a fim de servir ao gerenciamento social. A imperfeição corporal também se encontra negativamente associada à sexualidade devido às marcas desacreditáveis. Ou seja: a repressão da experiência sexual, do prazer e do contato com o outro é restringida pelo próprio jovem em virtude da necessidade de manter em segredo aquelas marcas da doença que ele quer esconder.


AFN: Em geral, a discussão sobre os direitos dos portadores de deficiência física envolve aspectos como o acesso a tratamentos de saúde e a inclusão na escola ou no mercado de trabalho. Pouco ou nada se fala sobre a questão do direito à sexualidade. Na sua opinião, por que este tema tem sido tão ocultado?


Ana Helena: Uma das maiores barreiras para a discussão da sexualidade de pessoas com deficiência se deve à escassez de relatos de experiência sobre o assunto, o que, somado ao estigma existente, colabora para uma perspectiva de que o portador de deficiência não tem direito a exercer a sua sexualidade. O desenvolvimento desta faceta fundamental para o ser humano tem sido negligenciado, silenciado e desconsiderado tanto pelas famílias de portadores de deficiência quanto pelos profissionais de saúde que atendem a esta clientela. A dificuldade da sociedade em perceber nestes jovens possibilidades de vinculação afetiva e sexual limita suas oportunidades de vida, estabelecendo uma relação antagônica entre a imagem dos mesmos como "não-pessoa" e o desenvolvimento da sexualidade. Esta postura de negação das possibilidades sexuais destes jovens sugere, equivocadamente, que os mesmos devem ser isolados, protegidos e infantilizados.


Nosso trabalho pretende ampliar a discussão sobre deficiência e sexualidade, valorizando as expectativas, as crenças, os desejos e as experiências de jovens portadores de deficiência física. Acreditamos que isso contribuirá para a transformação da visão limitante e contraproducente acerca desta população. Discutir a sexualidade do portador de espinha bífida implica necessariamente abordar o conceito de sexualidade de maneira abrangente, incluindo tanto os aspectos físico-biológicos quanto os socioculturais.


AFN: As dificuldades para vivenciar sua sexualidade podem trazer que prejuízos ao jovem portador de deficiência física?


Ana Helena: Sim. Os planos futuros dos jovens entrevistados se encontram permeados pela experiência da doença e pela dificuldade da expressão e da experiência de sua sexualidade. Identificamos que os jovens portadores de espinha bífida, apesar de verbalizarem o desejo tanto de realização profissional e pessoal como de integração social, sentem que a presença da doença em suas vidas age como uma barreira para o alcance destas metas.


AFN: Quais soluções você propõe para que os jovens portadores de deficiência física possam usufruir do direito à sexualidade?


Ana Helena: A sexualidade do portador de deficiência deve ser abordada levando em consideração tanto os aspectos físicos e subjetivos quanto os valores, crenças e expectativas da sociedade na qual o indivíduo se encontra inserido. No discurso dos jovens entrevistados, constatamos uma carência referente às discussões sobre sexualidade e deficiência física dentro das famílias e também no âmbito dos serviços de saúde. A escassez de informações sobre as possibilidades eréteis, a administração da disfunção urinária e fecal no que diz respeito a situações de contato sexual e as possibilidades reprodutivas de jovens portadores de espinha bífida reflete a necessidade da transformação do olhar da comunidade científica e dos profissionais de saúde em relação a estes jovens.


O exercício da sexualidade é um direito de todos e a carência de informações sobre diversas questões que envolvem a sexualidade do portador de deficiência é um impedimento para o mesmo. Tornam-se necessárias medidas educativas que abordem a saúde do adolescente portador de deficiência de maneira abrangente, garantindo a discussão de temáticas essenciais para o alcance de seus direitos humanos, inclusive seus direitos sexuais. Ao ignorar esta lacuna, contribui-se para a desinformação e insegurança do portador de deficiência, além de alimentar as percepções estigmatizantes em torno das suas possibilidades de vida.


AFN: Você menciona no artigo a importância do acesso à informação e do diálogo franco entre os jovens portadores de deficiência física e os profissionais de saúde. Por que este diálogo tem sido tão difícil e o que pode ser feito para melhorá-lo?


Ana Helena: Acredito que isso está relacionado à dificuldade de os profissionais de saúde reconhecerem esses adolescentes como protagonistas de suas vidas, capazes de falar sobre suas experiências e compreender as informações oferecidas pelos profissionais.

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