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07/04/2009

Artigo em revista analisa a fronteira entre a vida e a morte

Renata Moehlecke


A história da redefinição da morte, que ocorreu após o início do uso crescente de máquinas e inovações tecnológicas de suporte a vida pela medicina na década de 1960. Esse é o tema do artigo assinado pela psicóloga Luciana Kind, da Universidade Católica de Minhas Gerais, que abre a mais recente edição da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos da Fiocruz. Em seu trabalho, a pesquisadora analisou a produção acadêmica da época, publicada em periódicos de destaque internacional, que resultaria na definição da morte cerebral e na legitimação de novos procedimentos, como os transplantes de órgãos.


 Angiografia cerebral que indica ausência de fluxo sanguíneo cerebral (Foto: <EM>site</EM> Anestesiologia)

Angiografia cerebral que indica ausência de fluxo sanguíneo cerebral (Foto: site Anestesiologia)


“As práticas médicas que tornaram possíveis os transplantes de órgãos obrigaram a ciência a se justificar”, explica Luciana. “Essas tecnologias reforçaram a construção de uma morte moderna, medicalizada, ligada a aparelhos, produtora de cadáveres funcionais”. De acordo com a pesquisadora, a utilização de aparelhos como o respirador artificial (dispositivo criado na década de 1930 para auxiliar no combate a epidemias de poliomielite nos EUA e Europa) apresentava dilemas morais decorrentes do prolongamento da vida, que passaram a ser discutidos por médicos, mas também por teólogos, filósofos, antropólogos e juristas.


Luciana conta que, após extensos debates, uma comissão americana, na década de 1980, elaborou e publicou um documento intitulado Uniform Determination of Death Act (UDDA, determinação uniforme do ato de morte), no qual a definição passa a vigorar entre duas mortes clinicamente aceitáveis: a parada irreversível das funções respiratórias e circulatórias e a parada irreversível de todas as funções do cérebro inteiro, incluindo o tronco encefálico. “O coração perdeu, nos anos 60, sua condição de órgão privilegiado para se afirmar a morte de alguém e ganhou, contudo, status de órgão nobre para a tecnologia de transplantes”, acrescenta a pesquisadora.


Poucos meses depois dessa definição, um outro documento (o Uniform Anatomical Gift Act ou o ato uniforme de doação anatômica) foi formulado e divulgado com a intenção de criar parâmetros para a livre doação de órgãos. “Nele já estão incluídas a necessidade de declaração de morte cerebral e a administração dos órgãos por equipes médicas distintas”, destaca a pesquisadora. “Essa delimitação entre as equipes médicas responsáveis pelo doador, pelos testes de confirmação e pelo receptor constitui até os tempos atuais a norma para a coleta de órgãos em diversos países, entre eles o Brasil”.


O debate, então, passa a ocorrer em torno da proteção do público sobre os potenciais prejuízos da prática de transplantes. “A relação na qual se dá a interlocução do fato médico com a sociedade como um todo é discutida em estudos desenvolvidos no campo das ciências humanas, que questionam a propagação da definição de morte cerebral e contribuem para a desmontagem da morte cerebral como caixa-preta produzida pelo saber biomédico”, comenta Luciana. “A partir dos anos 80, a antropologia e a sociologia médica apresentam investigações críticas sobre o debate desencadeado no âmbito da bioética a respeito de temas fronteiriços entre vida e morte”.


A pesquisadora ainda aponta que, no Brasil, a definição de morte foi exigida devido ao primeiro transplante cardíaco entre humanos, realizado em 1968. Quanto à regulamentação dos transplantes, não há citações a expressão ‘morte encefálica’ ou ‘cerebral’, sendo restrita a retirada dos órgãos para fins terapêuticos a casos que apresentem prova incontestável de morte. “Aparentemente houve no Brasil uma rápida incorporação dos transplantes aos procedimentos médicos de rotina e não se encontram publicações que mencionassem opiniões contrárias à definição de morte cerebral”, esclarece Luciana. “Em vez disso, a expertise médica é enfatizada no que concerne à institucionalização dos transplantes no país e, ainda assim, os transplantes de órgãos de pacientes com morte cerebral só se tornaram rotina médica nos anos em que seguiram o uso de imunossupressores no combate à rejeição”.


Publicado em 7/4/2009.

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