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11/11/2011

Autores propõem reflexão crítica sobre excessos relacionados à prevenção dos riscos na ciência e saúde

Fernanda Marques


Excessos: eles fazem parte do espírito de nossa época. E é justamente de excessos de que tratam Luis David Castiel, Javier Sanz-Valero e Paulo Roberto Vasconcellos-Silva no livro Das Loucuras da Razão ao Sexo dos Anjos: biopolítica, hiperprevenção, produtividade científica, lançamento da Editora Fiocruz. Os autores discutem, em especial, os excessos no campo da saúde pública e no território acadêmico, chamando atenção para “a dimensão ideológica que parece rodear muitas abordagens catastrofistas ditas racionais”. Em outras palavras: multiplicam-se estudos científicos que apontam para uma infinidade de riscos à saúde e à vida associados a comportamentos individuais – assim, a ciência respalda a ‘sociedade do risco’, onde as pessoas, de acordo com as mais recentes pesquisas, devem moldar suas condutas para afastar toda e qualquer ameaça. Porém, esta prevenção generalizada – ou hiperprevenção – é inatingível. “Algo que estimula altos teores de ansiedade que marcam a nossa época de modo inapelável”, destacam os autores.



A proliferação de estudos científicos sobre fatores de risco nutre uma angustiante necessidade de prevenir-se constantemente. Essa cadeia representa um “neo-obscurantismo iluminista”, pois é a própria ‘racionalidade’ da ciência que alimenta a aversão ‘irracional’ a todos os perigos – o que conduz às ‘loucuras da razão’. Para ilustrá-las, os autores descrevem dois estudos e criticam-nos por suas abordagens demasiadamente reducionistas. O primeiro, publicado no New England Journal of Medicine, acompanhou cerca de 12 mil pessoas durante mais de 30 anos e concluiu: o risco de um indivíduo se tornar obeso aumenta quando um amigo dele se torna obeso. O outro, no British Medical Journal, investigou cerca de 5 mil pessoas ao longo de 20 anos e revelou: um indivíduo rodeado por gente feliz tem maior probabilidade de ser feliz no futuro – ou menor risco de ser infeliz... “Podemos, ainda, provocativamente, agregar os dois estudos e alertar para a possibilidade de, se a pessoa feliz for obesa, haver probabilidade, ao se difundir a felicidade nas redes, de também ser possível estar-se transmitindo a obesidade”, ironizam os autores do livro.


Segundo eles, essas abordagens reducionistas estão ligadas à ideologia da cientificidade, na qual o conhecimento se torna mercadoria. Na lógica de competição do mercado globalizado, cumprem a função de reger moralmente a conduta das pessoas no contexto do individualismo. Tal ideologia se manifesta na produção frenética de artigos científicos, com ênfase em estudos de molde quantitativo, fabricados de modo veloz e em tal quantidade que uma respectiva leitura criteriosa é extremamente difícil.


Nesse cenário contemporâneo, as avaliações de desempenho acadêmico voltam-se para a acumulação de artigos-mercadorias, em detrimento de uma visão crítica sobre os resultados dos estudos e sobre o sentido político e ideológico dos riscos. Como desdobramentos, tem-se uma assistência à saúde como uma prática puramente instrumental, desprovida de reflexão teórica, e desloca-se a responsabilidade pela saúde do âmbito público para o privado.


“Este livro permite concluir que a biopolítica contemporânea, na medida em que se articula em torno da problemática dos riscos, destitui os indivíduos de toda e qualquer dimensão ético-política. Reduzir os sujeitos à pura corporeidade, à vida nua, é, sem dúvida, uma eficaz estratégia de despolitização das relações humanas e sociais”, comenta a doutora em lógica e filosofia das ciências Sandra Caponi, que assina o prefácio da obra. “Os autores afirmam que o que se exige hoje de cada um de nós é que sejamos capazes de assumir a posição de fieis cidadãos epidemiologicamente ativos, abertos ao aconselhamento de experts que normativizam nossa saúde. Como vimos no exemplo da felicidade citado, isso implica, de fato, deixar nas mãos dos multiplicadores de riscos não somente questões relacionadas à nossa saúde, mas também aquelas que fazem parte de nossas escolhas existenciais e políticas, isto é, aquilo que define nossa condição humana”, finaliza Sandra, professora do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


Publicado em 11/11/2011.

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