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03/08/2007

Bioética: o estudo da moralidade dos atos humanos sobre o ‘mundo vital’


Onde se situa o limite entre direito individual e interesse coletivo? De que forma as sociedades complexas podem estabelecer mecanismos organizativos e redutores de complexidade sem cair na armadilha do autoritarismo e do Estado de exceção? Como implantar políticas públicas eqüitativas, que protejam as populações mais vulneráveis, sem extrapolar para o paternalismo que impede o fortalecimento dos sujeitos autônomos e da cidadania? Para tentar desvelar o sentido e compreender a importância da bioética na reflexão sobre essas e muitas outras questões cruciais para a vida humana, o Informe Ensp conversou com o professor e pesquisador Fermin Roland Schramm, do Departamento de Ciências Sociais (DCS) da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp).

 

 Fermin: a bioética é o estudo da moralidade dos atos humanos sobre o mundo vital (Foto: Ivone Perez)
Fermin: a bioética é o estudo da moralidade dos atos humanos sobre o mundo vital (Foto: Ivone Perez)

O que é exatamente bioética e como esse conceito se diferencia do conceito de ética?
Fermin Roland:
Existem várias definições pertinentes. A bioética pode ser entendida como ‘ética da vida’, uma definição muito abrangente, mas bastante genérica e pouco prática; ‘ética da sacralidade da vida’, de inspiração religiosa e que sublinha os possíveis interditos quando agimos sobre os seres vivos, em particular os humanos, mas muito limitada e questionável num mundo prevalentemente secularizado; ‘ética da qualidade de vida’, oposta à anterior, dentre outras. De fato, todas elas se referem, direta ou indiretamente, parcial ou integralmente, à praxis humana sobre o ‘mundo vital’ (Lebenswelt em alemão), isto é, às ações humanas que afetam outros humanos – numa visão reduzida, chamada antropocêntrica –, outros seres vivos não humanos – numa visão dita biocêntrica – ou o conjunto dos seres vivos e seus ambientes – numa visão ecocêntrica. Outra característica comum é que, por ser uma ética, deve considerar a praxis humana de acordo com algum sistema valorativo ou um conjunto de sistemas valorativos que determina o que é correto e não correto, justo ou injusto, ou, segundo a tradição filosófica que vem dos gregos, ‘de acordo com o Bem e o Mal’.

Eu costumo utilizar uma definição, em parte minha e em parte fruto de leituras, talvez antropofágica, que considera a bioética como o estudo da moralidade dos atos humanos sobre o ‘mundo vital’, com efeitos significativos e irreversíveis sobre sua auto-organização – ou autopoiese –, sendo que o contexto da moralidade de tais atos sempre se dá em situações de conflitos de interesses e de valores.

Por isso, a bioética, como a ética em geral, precisa de uma estrutura do tipo agente-paciente, ou agente-afetado, ou seja, de uma estrutura eu – outro ou eu – tu, ou ‘eu’ sendo sempre o agente ou autor do ato e o ‘outro’ podendo ser um ser humano ou não. Sua diferença com relação à ética – ciência da moral, como dizem os dicionários – seria que ela se aplica especificamente à vida. Isso nos leva a uma primeira dificuldade no que se refere ao termo ‘vida’, que os gregos distinguiam em zoé – ‘vida orgânica’ – e bíos – vida tipicamente humana na medida em que esta teria uma dimensão simbólica, moral e política, isto é, cidadã. Ou seja, o problema é se a bioética se refere somente ao bíos, como pretende a ‘ética da qualidade de vida’, ou também à zoé, como pretende a ‘ética da sacralidade da vida’ ou autores como Giorgio Agamben, que se debruça sobre os efeitos da biopolítica com relação àquela que ele chama de ‘vida nua’.

Existe alguma tentativa para se superar esse impasse?
Fermin:
Bem, essa problemática é abordada atualmente, de forma bastante original – como já disse - pelo filósofo italiano Agamben, que não trabalha diretamente com bioética, mas que reflete, em parte na continuação dos estudos de Michel Foucault sobre dispositivo, biopolítica e biopoder, em parte de maneira original, quando aborda o conjunto de práticas, saberes, medidas e instituições que têm o objetivo de controlar, gerir, governar e orientar os comportamentos e o pensamento dos humanos chamado oikonomia. Uma das maneiras possíveis de superar o impasse entre ‘vida nua’ (zoé) e ‘vida cidadã’ (bíos) consiste em rever as próprias tarefas e o campo de aplicação da bioética, dizendo, por exemplo, que as tarefas da bioética são normalmente de dois tipos – descritivo e normativo –, mas que, em alguns casos, podem ser três, acrescentando a função da proteção. Nesse sentido, a descrição de uma situação de conflito e uma análise racional e, até onde for possível, imparcial desta situação é condição necessária para a atuação da bioética; os aspectos normativos, que podem ser prescritivos – relativos ao que se deve fazer – ou proscritivos – relativos ao que não se deve fazer – seriam a dimensão propriamente prática da bioética e; por fim, o aspecto de proteger os afetados por um conflito e, em particular, os sujeitos que não têm condições para se protegerem sozinhos e que seria uma espécie de desdobramento prático das funções descritiva e normativa aplicadas a sujeitos que não são simplesmente vulneráveis, mas, sobretudo, vulnerados, isto é, que só possuem – para utilizar a expressão de Agamben, suas ‘vidas nuas’. A questão é que a tarefa protetora não é aceita por todos os bioeticistas, sobretudo por aqueles que confundem ‘proteção’ e ‘paternalismo’.

E como a bioética se insere dentro da saúde coletiva?
Fermin:
Na saúde coletiva, mas também na saúde individual, que é o correlato da primeira, a bioética aborda a moralidade das políticas de saúde, isto é, as questões, com fortes implicações morais, que dizem respeito ao delineamento de políticas sanitárias justas, as quais devem equacionar a universalidade do objetivo e as medidas compensatórias de tipo eqüitativo como a focalização de determinados segmentos como populações vulneradas, à alocação de recursos finitos e escassos, mas também a aspectos como a iatrogenia implícita na medicalização da vida, aos aspectos biopolíticos e de biopoder, ao dispositivo da oikonomia que tende a subsumir todas as dimensões da vida, etc.

Em que medida as questões éticas têm determinado o rumo das políticas e programas de saúde? Essa situação tem sofrido mudanças ao longo do tempo?
Fermin:
Como não é possível dar uma resposta exaustiva à sua pergunta, eu tentarei ser sucinto e, por essa razão, serei necessariamente um pouco reducionista. Pode-se dizer que, desde as primeiras tentativas do Estado Moderno de proteger as populações contra epidemias e outras moléstias, as questões morais estavam presentes, embora existissem desde a Antiguidade normas de conduta aplicáveis aos profissionais de saúde da época: os médicos. Não podemos esquecer que o primeiro código de Ética Médica conhecido e suficientemente estruturado data de Hipócrates. A rigor, poder-se-ia dizer que a bioética só se torna possível quando surgem os questionamentos sobre a licitude das políticas sanitárias e isso vale, em particular, para a Bioética Brasileira, que surge, justamente, como parceira da Saúde Pública, na segunda metade dos anos 80.

Direito individual versus interesse coletivo. Como resolver esse dilema que se manifesta em várias questões – legalização do aborto e planejamento familiar, proibição da propaganda de bebidas alcoólicas, restrição ao fumo em ambientes fechados, entre outras – que estão sendo discutidas atualmente pela saúde?
Fermin:
Para enfrentar corretamente a questão individual versus coletivo, pelo menos de um ponto de vista laico e agnóstico que caracteriza as sociedades complexas e secularizadas contemporâneas, deve-se, em meu entender, evitar a confusão de níveis de pertinência. De fato, existe um nível individual ou da autonomia individual e que diz respeito ao direito moral da pessoa de dispor de seu corpo, desde que este seu ‘dispor’ não afete, de maneira significativa, outros corpos e seres vivos; caso contrário, entramos no nível coletivo. Entretanto, tais níveis não são estanques e existem casos de efetivo conflito entre individual e coletivo ou entre ‘grupal’ e coletivo. Vejamos isso com alguns exemplos.

A questão do aborto ou ‘moralidade do aborto’ como diz corretamente Maurizio Mori em seu livro com o mesmo nome, diz respeito a um conflito entre o interesse da gestante que, por alguma razão não quer levar a gravidez a termo, por um lado, e o interesse de um futuro ‘Maria’ ou ‘João’ em nascer e gozar da vida, por exemplo, por outro; um conflito que é entre um direito de uma pessoa atual e um direito de uma pessoa potencial. As coisas podem ser mais complicadas quando se considerem outros interesses envolvidos, como poderia ser aquele de uma política de controle da natalidade, e isso independentemente de ser pelas melhores razões do mundo. Nesse caso, temos um conflito entre um interesse individual atual e um interesse individual potencial, mas também um conflito entre esses dois interesses e um terceiro, que poderia ser o interesse da ‘espécie’ – para utilizar propositadamente uma palavra polêmica – ou do planeta Terra. De qualquer maneira, a questão do aborto se resolve, a meu ver, da forma como foi encarado pelas feministas que defendem o direito de escolher entre fazer nascer e proteger um novo ser intra-específico ou abortar, porque a corpo é – pelo menos nas sociedades laicas contemporâneas que aceitam a cultura dos Direitos Humanos – propriedade da gestante, assim como todos nós somos, em última instância, os ‘donos’– outra palavra polêmica – de nosso corpo. Agora, é claro que ninguém faz aborto por brincadeira ou porque “abortion is beautyful”!

Outro exemplo: o fumar (eu sou um deles). É correto que quem não queira ser esfumaçado tenha o direito a isso, sendo, portanto, justo separar, em locais fechados, fumantes de não fumantes. Parece-me uma evidência de uma convivência de tipo minimamente civilizado. Mas, por outro lado, o fumante tem o direito de fumar se não prejudicar ninguém além de si mesmo. E aqui surge outro problema: mas se o fumante adoecer e precisar de recursos escassos terá direito a tais recursos? Essa questão já se colocou com relação a transplantes de fígado, para os alcoolistas, ou de pulmão. A questão é complexa, mas penso que se devam evitar histerias que redundem em uma medicalização indevida da sociedade, como bem indicam os estúdios de Foucault e Agamben, dentre outros. Porque se entramos nesta lógica, bastante paranóica e ‘persecutória’, como diz o colega Luís David Castiel, também pesquisador da ENSP, tudo – estresse, colesterol, pressão, falta de exercício – se torna uma ameaça e isso requer, cada vez mais, uma espécie de grande Estado de Exceção, como diz Agamben. De fato, os sistemas complexos, embora requeiram, como pensava Luhmann, redutores de complexidade para poder funcionar, devem tomar muito cuidado na escolha do grau de redução, para não se tornarem sistemas autoritários e, portanto, ilegítimos moralmente.

Atualmente, um dos grandes problemas do SUS é a judicialização da saúde. Muitos pacientes acionam a justiça para receber medicamentos caros e específicos do sistema, enquanto milhares de usuários não conseguem receber medicamentos baratos ou comuns. Como se resolve um problema desses à luz da ética, uma vez que a integralidade e a universalidade são princípios do SUS, mas os recursos são limitados?
Fermin:
A judicialização da saúde é de fato um dos grandes empecilhos para uma política de saúde que tenha os mesmos princípios do SUS e que se situe em um mundo que não seja da fantasia, mas do real. Mas é, por outro lado, tanto o desdobramento da cultura dos Direitos Humanos como o fruto de uma tensão entre o nível individual e o nível coletivo, que é uma tensão objetiva, ou uma conflituosidade estrutural, dos sistemas sociais complexos. A solução, neste caso, é certamente ética, mas é, sobretudo, política. Do ponto de vista ético e bioético, poderá, eventualmente, ser resolvida analisando caso a caso, pois deverão ser comparados os vários interesses em jogo, sua relevância, sua prioridade lexical, quando existir, etc. Do ponto de vista político, as coisas podem ser mais difíceis, mas não insolúveis se os conflitantes forem cidadãos razoáveis e justos, como já aconselhava Aristóteles.

Fonte: Informe Ensp

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