12/02/2019
Ninguém vigiava. Nem uma câmera, nem vigia, nem quem cuidava, nem quem operava sua estanqueidade. A barragem virou um fantasma, desapareceu sem ser vista. Ou nem quem via, pois era só vista a uma distância sem possibilidade de interação. E seus impactos se multiplicaram. Por que a diferença no número de vítimas entre a cidade desaparecida de Bento Gonçalves e a devastação humana da ruptura da barragem da Mina do Feijão? A diferença do risco entre barragens em atividade e desativadas. O olhar na barragem da Samarco estava atento, a população foi avisada informalmente, por trabalhadores que estavam no topo, na área, na fuga.
Ligações foram feitas, e a população de Bento foi evacuada por ela própria, tal a percepção do risco eminente que representava a barragem. Barragem a montante é situação de risco inaceitável, principalmente no empreendimento da Vale e da Samarco. Elo mórbido, objeto de redução de risco por ação administrativa de Gerenciamento Artificial de Risco, com a conivência da Assembleia Legislativa de Minas Gerais e dos órgãos fiscalizadores à revelia da sociedade civil, dos moradores da região, de técnicos de Minas Gerais, do Brasil e de todo planeta. Não foi ouvido o alerta.
Barragens a montante são condenadas pelo mundo afora. No Chile, esse tipo de contenção de rejeitos foi banido em toda atividade de mineração na década de 1970. O gerenciamento artificial de riscos é a regra das empresas há décadas no Brasil, e não são os engenheiros os responsáveis. É uma prática de gestão de responsabilidade corporativa. Esse rebaixamento de grau de risco, a sirene de emergência e a área administrativa e refeitório na linha do pior cenário das contingências possíveis são exemplos do valor corrente dado à segurança industrial brasileira.
A certeza da impunidade e das possibilidades de gestão das crises pós-desastres, como exemplo no caso da Samarco, em que a própria empresa coordena a ação pública de mitigação de danos, estabelece uma empresa laranja oficial ("Renova") para cuidar dos passivos sob seu controle, fecha escola pública e dispõe de áreas públicas para atendimento dos desabrigados em Mariana, gerencia saneamento e a distribuição de água em Governador Valadares, desrespeita pescadores e indígenas em todo o trajeto do Rio Doce, com uma postura imperial ao arrepio da leis, dos direitos humanos impondo a força do capital e popularizando o empreendimento acima do trabalho humano como valor. Essa formulação torna-se popular, vence as eleições com promessas de mais flexibilização das regras de normatização de controle de riscos.
O crime ambiental passa a ser instrumento de grandeza. Vem o novo acidente de trabalho ampliado apoiado na terceirização e no controle dos documentos de avaliação de risco pelos próprios empreendimentos. Mais uma vez, o maquiado para liberação é instituído e multiplica consequências. O luto é disseminado, o luto dos parentes, o luto dos amigos, o luto do trabalho, o luto do ambiente, o luto dos animais, o luto da política, o luto das instituições, o luto das comunidades. A vergonha das altas esferas de gestão envolvidas na disseminação da morte e do sofrimento da destruição espalham pelo vale o conforto do capital e a ganância do mercado, outrora ode aos valores transnacionais e da construção da imagem positiva dos pregões e das análises de risco econômico dos Empreendimentos Bomba. Nunca, nunca mais! Mais Vigilância de Acidentes de Trabalho Ampliados e Desastres! Mais transparência, participação popular, comunitária e de técnicos em uma ação de vigilância da saúde dos trabalhadores e da saúde ambiental participativa e interdisciplinar.
*Jorge Machado é pesquisador da Fiocruz Brasília, médico sanitarista e coordenador do Programa de Promoção da Saúde Ambiente e Trabalho (PSAT).
Texto originalmente publicado no jornal Correio Braziliense (11/2/2019).