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26/03/2008

Carlos Gadelha comenta o desafio de tornar a saúde uma área estratégica para o complexo industrial

Mariana Rios


Há cerca de duas décadas na Fiocruz, o vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da instituição, Carlos Gadelha, está entusiasmado com o desafio de reativar a indústria da saúde no país e a missão de tornar o setor estratégico para o complexo industrial. “Estou ajudando o Ministério da Saúde na formulação da política nacional de desenvolvimento industrial e da inovação em saúde e na própria articulação da saúde com a política nacional de desenvolvimento”, explica o economista. A seguir, em entrevista publicada no jornal Correio da Bahia, Gadelha conta como trabalha a abordagem da economia política na saúde e discorre sobre os problemas que a longo prazo podem causar impacto nos programas mantidos pelo governo federal, caso a saúde não esteja atrelada à produção industrial.


 Gadelha: uma das coisas mais importantes do PAC é que tirou a saúde do seu insulamento 

Gadelha: uma das coisas mais importantes do PAC é que tirou a saúde do seu insulamento 


Qual o panorama da produção tecnológica e industrial na área da saúde hoje no país?


Carlos Gadelha: Ocorreu um movimento contraditório. O Brasil institucionaliza o Sistema Único de Saúde (SUS) na Constituição de 1988, lança a lei orgânica da saúde em 1990. A partir daí, o Estado brasileiro tem que garantir que a saúde seja universal, equânime e integral. Contraditoriamente, a indústria da saúde, da década de 90 para  cá, regrediu muito do ponto de vista tecnológico, embora tenha assistido a uma expansão na produção de alguns produtos, como medicamentos. Então, no mesmo momento em que se está implantando o SUS, fecham-se 1.700 estabelecimentos produtores de química fina no Brasil. Este setor foi praticamente destruído e é o setor tecnológico mais relevante. Na Bahia, assistimos ao fechamento da Bahiafarma. Exemplo muito concreto. Hoje, temos um país muito dependente de importação de componentes eletrônicos, ressonância magnética e equipamentos para hemodiálise – até os filtros utilizados.


Qual o reflexo desse desmonte na economia e que alternativa é vislumbrada?


Gadelha: Na verdade, hoje o sistema de saúde é muito vulnerável. Cerca de 30% de todo o gasto na área nacional de saúde, atualmente em torno de R$ 80 bilhões, depende, de alguma forma, de importação. Acabou de ocorrer uma crise no mercado imobiliário americano, e se, daqui a pouco, ocorre um problema financeiro e a taxa de câmbio dobra, quebram o sistema de saúde e os programas desenvolvidos. Então, hoje, este assunto deve ser colocado na agenda – o que está fazendo o ministro (da Saúde) José Gomes Temporão, que teve a coragem de colocar a política industrial e de inovação integrada à de saúde.


Não se pode mais pensar de forma isolada saúde e economia...


Gadelha: Isso. Neste momento, se pode pensar ‘mas o dólar está barato, qual o problema de importar?’. Se fossem apenas produtos de baixo conteúdo tecnológico, não estaríamos preocupados. O problema é quando se destrói a capacidade de indústrias que são muito intensivas em conhecimento. Para exemplificar, cerca de 10% do nosso orçamento destinado ao câncer é consumido com a compra de apenas um medicamento. Se amanhã tivermos qualquer problema de acesso a esse medicamento, quebramos nossa política nacional de câncer. Então, a idéia não é nacionalista, xenófoba. Estamos num mundo globalizado, vamos ter relações comerciais. O problema é que segmentos da saúde como um todo ficaram muito frágeis do ponto de vista do conhecimento e da inovação.


Existe a possibilidade de programas nacionais de saúde entrarem em colapso, pela ausência dessa política de inovação?


Gadelha: Não chegamos a um ponto de colapso porque temos uma situação internacional favorável. Mas o receio existe se não houver esforço de articular e colocar, na agenda de política da saúde, a política do desenvolvimento industrial e da inovação. Hoje,  estamos no mundo da terceira revolução tecnológica e a saúde tem que se preparar para isso. Este é o setor mundial – junto com o militar – no qual mais se gasta com pesquisa e desenvolvimento. Então não se pode avançar no sistema de saúde ignorando a questão da inovação e do conhecimento. Estamos na crônica de uma morte anunciada. Se não tomarmos essas decisões hoje, daqui a dez anos, entramos numa situação de extrema vulnerabilidade. Crescentemente, são introduzidos novos medicamentos, vacinas, equipamentos, os serviços médicos se tornam mais complexos e não se usa esse potencial para gerar conhecimento, inovação e produção para o país. É dramático. Por exemplo: um grande hospital é criado no interior da Bahia, mas pode não funcionar direito porque não consegue manter os equipamentos – importados e cuja manutenção não tem como ser feita dentro do país. Então, aquele investimento que podia gerar emprego, renda, atrair trabalhadores, gerar emprego na indústria de equipamentos e atrair médicos qualificados pode acabar virando uma sucata.


O anúncio, pelo governo federal, do PAC na saúde altera este quadro?


Gadelha: Uma das coisas mais importantes do PAC é que tirou a saúde do seu insulamento, ou seja, ele faz uma grande articulação de governo para viabilizar essas ações. Junto com o PAC, o BNDES lança um programa para aplicar R$ 3 bilhões no desenvolvimento da indústria da saúde, com as  menores taxas de juros do país. É o Programa do Desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde (Profarma). A nova política industrial elegeu o complexo industrial da saúde como uma estratégia nacional de desenvolvimento. O PAC da Saúde coloca pela primeira vez a inovação e o complexo industrial da saúde como prioridades básicas. Qual a provocação que faço? Os estados têm que embarcar nessa. A Bahia tem uma petroquímica superdesenvolvida, por exemplo. Pode caminhar para produzir a química fina, os fármacos, reativar a Bahiafarma. Estou falando como um pesquisador acadêmico da Fiocruz. É muito importante haver a convergência dessas políticas.


O ministro José Gomes Temporão afirmou que aumentou o déficit da balança comercial no setor de saúde. Além de importar tecnologia que poderia ser produzida aqui, quais outros benefícios poderiam ser revertidos para a população brasileira?


Gadelha: Hoje, quanto mais se ampliam os programas de saúde sem articular assistência com o desenvolvimento industrial e da inovação em saúde, cresce o déficit comercial. O PAC da Saúde prevê a criação de três milhões de empregos. Hoje, o setor de saúde emprega nove milhões de pessoas com carteira assinada no Brasil. A saúde é também fator de desenvolvimento, não é apenas um ônus.


Há também um contexto favorável para a valorização da saúde?


Gadelha: Temos o envelhecimento da população brasileira, a redução da taxa de natalidade, quase no nível do Primeiro Mundo. O gasto com saúde veio para ficar. A gente não vai reduzir. Pelo contrário, a gente precisa ampliar, o Brasil gasta pouco com saúde. O gasto per capita do Brasil em saúde é metade do gasto argentino ou mexicano. Ele é 6% do que é gasto no Canadá. Vai crescer o gasto público e privado em saúde no Brasil e, se não tivermos um setor produtivo forte e uma capacidade de conhecimento, podemos ficar seriamente vulneráveis.


De que forma as doenças negligenciadas pelos grandes laboratórios, como leishmaniose, que atinge a população carente e periférica, também serão contempladas?


Gadelha: Os produtos que essa população consome, quem compra é o Estado, que pode fazer uma política inteligente para usar seu poder de compra. Os governos – federal, estaduais e municipais – compram entre R$ 10 e R$ 12 bilhões por ano, do setor produtivo. O Estado é o grande mercado e compra quase 100% das vacinas, cerca de 50% de reagente para diagnóstico. Nas doenças negligenciadas, o Estado pode garantir rentabilidade mínima para que as empresas passem a produzir este produtos no país. Esta á uma área de tecnologia de ponta. A idéia de investir em saúde tem essa dimensão, articulando política social com política de desenvolvimento.


Num país que quebra patentes, como equilibrar a relação entre investimentos e confiança?


Gadelha: Primeiro o termo correto não é quebra de patente. A licença compulsória é permitida na legislação internacional de propriedade intelectual. Não estamos fazendo nada ilegal.  O Brasil usou a licença compulsória para viabilizar um programa de saúde, de forma muito cuidadosa. O país começou a reconhecer patentes há dez anos e nem por isso aumentou o gasto nacional em inovação e não houve licença compulsória nesse período. Não é verdade que a patente está inibindo o investimento em inovação até porque há política muito cuidadosa. E quem produz em saúde tem que saber que produz para setor muito importante para a sociedade. Na Declaração de Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC), foi aprovado no âmbito internacional que os direitos de propriedade não poderiam se sobrepor aos direitos de saúde pública. Se for usada de forma cuidadosa, não representa desestímulo.


Fonte: Correio da Bahia

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