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31/10/2013

A cidade como construção histórica é tema do livro 'História urbana'

Haendel Gomes


Cultura urbana, religiosidade, cultura política, relações de poder, história social do trabalho e a questão da identidade são temas abordados no livro História Urbana: memória, cultura e sociedade, organizado pelos historiadores Gisele Sanglard (Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz), Carlos Eduardo Moreira de Araújo (Centro Universitário UNIABEU) e José Jorge Siqueira (Universidade Severino Sombra). Em 16 artigos, a obra propõe uma abordagem renovada e atualizada com a historiografia contemporânea, para analisar a cidade como construção histórica. Em contraposição à concepção de cidade como um fato natural estático, prioriza o estudo dos processos sociais que redefinem, ao longo do tempo, o que é propriamente urbano. O painel oferecido é valorizado pela variedade de cidades tratadas, destacando-se o Rio de Janeiro ao lado do Vale do Paraíba fluminense, Minas Gerais e Recife. Segundo o trio de organizadores, o livro está dividido em dois eixos de interpretação – os olhares sobre o urbano e a tessitura das relações com a urbes (cidades), levando em consideração as transformações ocorridas em cada um dos grupos – e três grupos de textos: Olhares sobre a cidade como palco de disputas e sociabilidade, Olhares sobre o trabalhador e Tecendo o urbano: cultura e sociedade.

Os organizadores acrescentam que, no primeiro eixo, a obra mostra trabalhos sobre as “relações do homem com a cidade colonial, do Rio de Janeiro e das minas gerais, em momentos de festividades, de violência explícita, de quebra de rituais ou nas trocas culturais”.  Nesse grupo, há artigos de William de Souza Martins [Irmandades, folias e imperadores: festas do Divino Espírito Santo na Corte do Rio de Janeiro (c. 1750-c.1830)]; Rodrigo Fialho Silva [O universo das letras: debates impressos e mediações culturais – São João d’El-Rey (1827-1829)]; Jorge Victor de Araújo Souza (A marca de Caim: relações entre a violência e cultura política no Rio de Janeiro colonial) e Irenilda Reinalda B. de R. M. Cavalcanti [Descortesias públicas e quebras de rituais: reações simbólicas contra as autoridades coloniais (Minas Gerais, 1734 e 1743)]. O cenário divide-se entre as cidades do Rio de Janeiro e de São João d´El-Rey e Vila Rica (MG), no período entre os séculos 18 e 19.

No segundo grupo de textos, os autores discutem temas como o mundo do trabalho escravo e livre no período de transição entre o cativeiro e a liberdade. Estão reunidos artigos de Flávio Gomes (Cidades como espaços atlânticos: sobre biografias, diásporas, marinheiros e africanos), que faz uma leitura do espaço urbano como gerador de cosmovisões, cooperação e identidade para os africanos da diáspora. Marcelo Mac Cord (Novos olhares sobre os trabalhadores livres: uma associação de artífices de cor no Recife oitocentista) narra a realidade do Brasil de meados do século 18 no Recife (PE), falando sobre a criação da Sociedade das Artes Mecânicas no interior da irmandade de São José do Ribamar, na capital pernambucana. Neste eixo, há ainda trabalhos dos pesquisadores Carlos Eduardo Moreira de Araújo (Antigos serviços, novas categorias: a utilização do trabalho prisional na urbanização do Rio de Janeiro, 1808-1821), José Jorge Siqueira (Transformações rumo ao capitalismo no Vale do Paraíba fluminense e o papel determinante da questão cultural para explicar o novo lugar do liberto da escravidão) e Lucimar Felisberto dos Santos (Moradas, ocupação e territórios urbanos: crioulos e africanos no Rio de Janeiro, 1870-1910). Eles abordam temas relacionados diretamente ao trabalhador negro e o uso de sua força de trabalho em seus respectivos artigos. A análise de Lucimar Felisberto é feita a partir do liberto José Martins e de outros casos correspondentes. Ela explica como esses trabalhadores ocuparam os territórios da cidade do Rio de Janeiro, “reconfigurando-os e dando-lhes novos significados culturais”, e a descoberta de novas formas de resistência. Para entender a trajetória de seus personagens, a autora se debruçou em estudos abrangendo um período de quatro décadas.

No terceiro grupo (Tecendo o urbano: cultura e sociedade), o Rio de Janeiro volta a aparecer como cenário. No texto A Paris dos trópicos e a Pequena África na época de Haussmann tropical, a autora Lúcia Silva fala das reformas urbanas propostas para a cidade desde a década de 1870 e sua relação com a população residente na região central, especialmente, a Pequena África e o grupo da Tia Ciata. A pesquisadora enfatiza a gestão de Pereira Passos no início do século passado. Segundo ela, a reforma implantada alterou a vida dos moradores. Houve aumento na fiscalização nas casas de diversão, proibição dos leiteiros em fazer a ordenha das vacas na frente do cliente e ainda da venda de miúdos pelas ruas do Rio.

Lúcia revela ainda em seu artigo que o grupo que defendia a reforma realizada em 1904 obteve uma vitória, mas de modo dicotômico. De um lado a iniciativa do prefeito Pereira Passos reduziu ou acabou com as habitações coletivas, especialmente na parte mais central e visível da cidade, mas, também contribuiu para aumentar esse tipo de habitação nas áreas mais afastadas da capital.

Uma das organizadoras de História Urbana: memória, cultura e sociedade, Gisele Sanglard também contribui com o texto A sociedade civil e a construção de hospitais na cidade do Rio de Janeiro da Primeira República. Tendo como base a relação da elite carioca com a abertura de hospitais na cidade, de maneira especial aqueles voltados para a criança, a autora levanta as transformações por que passou a cidade. Gisele narra como aquele grupo que ganhava força na cidade atuava na manutenção de instituições de assistência; privilegiando o “pobre trabalhador”, mais especificamente a mãe operária. Na avaliação da historiadora, a discussão “permite pensar as transformações da cidade”, tanto no que concerne as mentalidades (ação da elite), quanto o saber médico – a pediatria e a puericultura surgindo como disciplina que busca encontrar soluções para minimizar a mortalidade infantil, sobretudo entre os filhos das mães trabalhadoras.

Além do centro, outras áreas da cidade como o subúrbio e a zona Oeste são tema do livro. Neste caso, o texto de Leonardo Soares dos Santos analisa o bairro de Jacarepaguá. Em Zona, sertão ou celeiro? A constituição do cinturão verde da cidade do Rio de Janeiro e seus impasses, 1890-1956, o pesquisador mostra a constituição da zona suburbana, sua relação com a cidade, a criação das linhas de bondes, o surgimento de políticos que se autoproclamavam ‘suburbanos’ e saiam em defesa da região. Em seu trabalho, o autor explica a transformação de Jacarepaguá em sertão – alusão às teorias sanitaristas das décadas de 1910 e 1920 –; portanto, doente, necessitando de intervenção do poder público. Nesse período, segundo Soares dos Santos, o bairro ganharia três hospitais de isolamento. Ele aborda ainda a questão em torno das “disputas para a manutenção da região como cinturão verde” no momento em que o bairro começava a enfrentar a especulação imobiliária.

Sobre os hospitais de isolamento, escrevem os pesquisadores Renato Gama-Rosa Costa, Ana Albano Amora e Sara Cabral Filgueiras. Com o título A saúde e a cidade: o bairro de Jacarepaguá e os hospitais de isolamento, dedicam-se ao estudo da Colônia Juliano Moreira, originalmente uma fazenda que, a partir de 1910, passa a ser local de isolamento de pacientes com tuberculose, doenças mentais e hanseníase, em razão de sua localização e do clima saudável. A análise é feita levando-se em conta os preceitos da arquitetura moderna e das teorias médicas vigentes à época, partindo da apropriação das edificações remanescentes daquele espaço e também de novas construções. Com isso, refletem sobre o terreno da Colônia nos dias atuais, quando a realidade mostra-se outra: o bairro se adensou e o tratamento médico já não prescreve mais o isolamento. O estudo suscita a questão de como preservar aquela área verde e o acervo do Museu Artur Bispo do Rosário.

Tecendo urbano: culturas políticas em xeque é o título do grupo de textos que encerra a obra. Reúne trabalhos de Ricardo M. Pimenta, Angélica Müller e Gustavo Alonso. O primeiro discute a preservação do patrimônio industrial carioca no artigo Memória em ruínas: desindustrialização fluminense no limiar do século XX, usando como base a história de dois ícones da época: a Companhia América Fabril e a Nova América.

Angélica Müller escreve sobre o então edifício localizado no número 132 da Praia do Flamengo. No local, havia o prédio da União Nacional dos Estudantes (UNE). A autora procura refletir sobre a construção considerada como “lugar de memória”, buscando em depoimentos de pessoas ligadas direta ou indiretamente ao movimento estudantil na época do regime militar, que “culminou com o incêndio do prédio” da UNE.

Este grupo final é concluído com o artigo de Gustavo Alonso. Em “Jeca Total: a invenção do sertanejo urbanizado na academia paulista”, o pesquisador estuda como a música sertaneja foi responsável pela construção de determinada identidade cultural brasileira nas décadas de 1960 e 1970. Ele analisa o conceito de caipira e a “oposição forjada com o sertanejo” a partir de uma perspectiva histórica, passando ainda pela discussão das categorias caipira e sertanejo na MPB. Para Alonso, a leitura deve ser feita a partir da relação entre Estado e sociedade, especialmente, “no momento histórico” no qual está inserido, ou seja, o das grandes migrações brasileiras, do nordeste para o chamado “Sul Maravilha”.

Serviço:
Livro: História Urbana: memória, cultura e sociedade
Organização: Gisele Sanglard, Carlos Eduardo Moreira de Araújo e José Jorge Siqueira
Preço: R$ 52,00
Número de Páginas: 368
Editora FGV

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